Sam Smith e Kim Petras Sam Smith e Kim Petras – foto: divulgação

Entenda como o Tik Tok está mudando a música na cabeça do público, do artista e das gravadoras

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Sucesso da rede mudou a forma como público descobre músicas. Artistas e gravadoras estão se rendendo às “exigências” do Tik Tok. A gente explica

No começo do século XIX, músicos passaram a ser contratados por cinemas para executar, ao vivo, a trilha sonora de seus filmes, até então mudos. As peças executadas acompanhavam o dinâmica do roteiro. Durante uma cena de ação, o grupo tocava uma música mais rápida e excitante. No momento romântico, algo para aquecer os corações da plateia. E assim seguia. A nova utilização da música representou uma bela quebra de paradigma. Grandes obras, escritas para serem executadas em teatros com acústica perfeita, estimulando a audição da plateia por um longo tempo, estavam sendo substituídas (apenas nos cinemas, claro) por algo em segundo plano, de menor valor, como uma escada para engradecer o audiovisual.

Décadas mais tarde, com o advento dos discos de vinil, mais um chacoalhão. As músicas precisavam ser reduzidas a 3 minutos, capacidade de um compacto de 7 polegadas, que eram entregues às rádios como amostra grátis para promover artistas. O mundo da música, especialmente o das composições musicais, precisava se adequar esta nova tecnologia, se quisessem se promover no universo pop que acabara de se formar, trazendo muito dinheiro para a indústria musical.

 

 

Os dois (de vários outros) exemplos acima nos mostram que, há muito tempo, o povo da música teve de mudar seu jeito de ver a própria obra para atender a fins mercadológicos. Principalmente, na forma de promover e distribuir música. Faz parte do jogo do tempo. Com os long plays, os álbuns conceito, cheio de canções conectadas. Com a MTV, a necessidade de um trabalho audiovisual para impulsionar a promoção da música a todo uma geração que cresceu com a cara grudada na televisão.

Disco de vinil antigo

Um dos primeiros discos de vinil da história

A criação de um imenso mercado musical através dos discos trouxe consigo uma indústria biliardária e complexa. Grandes gravadoras (chamadas majors), agências de artistas, arrecadadoras de direitos autorais, editores, assessores… um mundo de gente se metendo entre o artista e seu público. É como se, entre o pescador e o peixe, um sem número de intermediários, com roupas de mergulhador, cuidasse das tarefas de puxar a linha, entortar o anzol, colocar a minhoca e enfiar na boca da presa.

Quanto maior o monstro, mais difícil sua locomoção. A capacidade de enxergar as novidades que emergem do subterrâneo levam tempo, quando são obrigadas a atravessar dezenas de departamentos. A lerdeza foi a responsável pelo maior 7 x 1 que a indústria fonográfica tomou em sua história: a troca de arquivos via MP3 na virada do milênio. Em vez de correr atrás de sua adaptação, as majors resolveram começar uma batalha jurídica processando quem encontrassem, incluindo rapazes nerds como, por exemplo, o fundador do Napster (um dos primeiros sites de troca de arquivos entre usuários da internet) Sean Parker, então com 24 anos.

Napster

Tela do inovador (e polêmico) Napster

Para as gravadoras, deu tudo errado, por um motivo simples: a internet tem a capacidade de aglutinar as massas de uma forma tão rápida e irreversível, que não existiria cadeia no mundo pra colocar tanto condenado, caso a estapafúrdia ideia das empresas em vencer no campo jurídico desse certo.

A nova revolução vem de uma rede social que cresceu drasticamente a partir da pandemia do covid 19, baseada em vídeos curtos repetidos ad infinitun nos celulares, que está prestes a atingir a absurda marca de 2 bilhões de usuários (embora “apenas” 100 milhões seja realmente ativa na rede).  Seu sucesso está mudando o jeito como as pessoas consomem música e, principalmente, como gravadoras e artistas pensam seu próprio trabalho. Foi tudo muito rápido, na velocidade dos dias digitais em que vivemos. Aspectos bons e ruins são apontados nessa nova era. Mas uma coisa é certa: é inevitável, e os tubarões da indústria fonográfica sabem disso.

Entendendo a revolução

Depois da rasteira que tomaram do povo quando os arquivos digitais (e depois o streaming) dominaram o consumo de música, as gravadoras aprenderam uma lição: não dá para lutar contra as tecnologias. O negócio é correr para cooptá-las o mais rápido possível. Este é um dos principais aspectos da era do Tik Tok. A gigantesca Universal Music comprou uma briga com a plataforma por melhores pagamentos em direitos autorais. Uma treta pública que rendeu até insultos nível quinta série nas redes sociais de ambos. Mas durou pouco. A retirada de seu catálogo de mais de 4 milhões de músicas do Tik Tok foi apenas um teatro para forçar uma negociação melhor. Semanas mais tarde, em maio deste ano, ambas fizeram as pazes. O que as gravadoras já entenderam, por trás do oceano de vídeos postados diariamente por usuários de todo o mundo?

A gente explica. Mas antes, é importante lembrar que estamos falando do universo da música feita para as massas. A música pop. A que lota estádios e festivais, aquela que as crianças ouvem. Ainda existe um mundo alternativo que segue inalterado, passando longe das transformações comportamentais do grande público e não é uma questão etária. Jovens andam comprando cada vez mais produtos físicos como discos de vinil, CDs e até mesmo fitas cassete, assim como pequenos shows pelas cidades do planeta.

A música, no Tik Tok, está em segundo plano

Assim como aconteceu lá no começo do século passado com os cinemas, o consumo de música no Tik Tok é diferente das gerações anteriores porque a música serve como apoio a um outro propósito. Se não era MTV um videoclipe era encomendado para promover a música, agora é a música quem ajuda a promover um conteúdo visual. Dancinhas, desafios, memes e toda sorte de banalidades. O que viraliza é o vídeo. A música vem puxada a reboque.

O consumidor é ativo, e não mais passivo

Se fora do Tik Tok a apreciação de uma música é dada em um modo mais contemplativo, seja em casa, no carro ou no trem, dentro da rede social mais bombada do mundo a banda toca de um jeito diferente. O segredo do sucesso da plataforma é convidar as pessoas a se engajarem. Gravar a própria dança, “remixar” um vídeo que já existe colocando um texto, uma imagem (o chamado react) ou mesmo uma outra música como trilha de apoio. Não à toa, 38% das músicas presentes no Tik Tok são modificadas ou editadas, incluindo aí a alteração em seu próprio tempo, tornando-a mais rápida ou mais lenta. Como sempre acontece, alguns artistas visionários entenderam isso rapidamente. O cantor americano Patrick Smith, por exemplo, desde 2020 publica covers na rede convidando os usuários a cantar ou tocar com ele, adicionando áudios em uma espécie de jam session virtual. A sacada já tomou conta dos departamentos de marketing das grandes gravadoras. Muita gente já cria, no pacote, a música e a coreografia, para incitar os usuários ao engajamento. Se houvesse Tik Tok na era do Axé dos anos 90, seríamos os reis do mundo.

A principal forma de se descobrir música nova

Atualmente, o Tik Tok é a principal divulgadora de novas músicas e artistas para seu público, de forma muito mais democrática do que os algoritmos usados em plataformas de streaming. Como é o vídeo quem puxa a música para o sucesso, jovens são expostos a ritmos musicais do mundo inteiro e de fontes desconhecidas. Rolando a tela, a molecada se depara com uma diva pop, depois com um cantor indiano, um sertanejo brasileiro ou um folk canadense. Pesquisas indicam que os usuários da redes estão muito mais propensos a ouvir gêneros musicais vindos de fora de sua bolha do que em qualquer outro lugar do mundo digital.

O tempo é relativo

Outro comportamento bastante interessante em relação às viralizações da rede é que seu público não está muito interessado em viradas geracionais. Vídeos e memes já ressuscitaram artistas como Abba, Fleetwood Mac e Celine Dion, bombando-os entre jovens de um jeito impossível fora daquele ambiente. Basta que algum criador de conteúdo resolva incluí-lo como trilha sonora de seu novo viral.

Apesar de tudo, rola uma grana

Mais estudos recentes dedicados à relação da indústria musical com o Tik Tok trazem alguns números surpreendentes, para delírio das grandes gravadoras.  46% dos usuários que encontram uma nova música ou artista o buscam nas plataforma de streaming, como o Spotify. E não para por ai: separando o mercado entre as pessoas que estão dentro e fora da rede, números entregam que quem usa o Tik Tok paga o dobro em assinaturas de streaming de música em relação a quem está fora. Também gastam o dobro em merchandise de artistas, como camisetas, bonés e outros badulaques.

Criadores de conteúdo no lugar de artistas

A porta de entrada para o sucesso do mundo pop agora é outra. Um terço das grandes contratações feitas por gravadoras em 2022 foram de artista que viralizaram primeiro no Tik Tok. A onda está criando um ambiente onde, antes de fazer música, a pretensa estrela pop precisa, antes, ser criadora de conteúdo. Desde postagens insistentes (sempre com a música por trás) a convites para “cantar junto”, artistas se estapeiam pela atenção do usuário do Tik Tok. Na canção Snowman, a australiana Sia desafiou os usuários a postarem vídeos cantando o refrão sem respirar. Em Unholy, de Sam Smith e Kim Petras, a gravadora publicou primeiro no Tik Tok o vídeo da música já começando no refrão, para aplacar a ansiedade dos viciados em conteúdo de 1 minuto. Não há mais tempo para introduções e arranjos.

 

 

 

 

 

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.