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Opinião: Raso como um pires, doc reflete a decadência de Ibiza

Ibiza

Ushuaïa Beach Hotel. Foto: Reprdução

The Evolution of Ibiza, disponível gratuitamente, entrevistou DJs e donos de clubes da ilha para falar sobre o monstro que eles mesmos criaram

Se a gentrificação fosse uma religião, a ilha espanhola de Ibiza seria sua terra prometida. E o documentário The Evolution of Ibiza: Can The White Island Retain Its Legendary Magic?, dirigido por Dan Tait e Laurence Koe, retrata esta história. Só que da pior forma, abordando o tema com a profundidade de um pires.

Em tempo, o slogan “a ilha branca” é usado pelo departamento de turismo do governo por causa da cor de sua tradicional arquitetura mediterrânea, comum em seu centro histórico. Mas no título, pode significar uma tenebrosa metáfora.

Nem mesmo a presença de alguns DJs que “estiveram lá” quando a lenda de Ibiza explodiu para o mundo, a partir dos anos 80, salvam o que teria potencial para ser um documento definitivo sobre a ilha que se tornou a Meca da vida noturna para o mundo. Carl Cox vira um triste DJ desatualizado. Fatboy Slim, um produtor de “experiências” diferentes na pista de dança. Devem ter ficado bem putos com a edição.

O próprio documentário vai entregando seu modo de pensar no decorrer de sus 68 minutos de duração. Tenta promover uma discussão sobre a “verdadeira Ibiza, onde todos dançam juntos na pista”. Mas as imagens na edição não retratam qualquer pessoa que destoe do padrão “magricela loira com copo de champanhe na mão, óculos escuro e roupa branca”.

O mesmo vale para os donos dos mais históricos clubes da ilha, entrevistados no filme. Começam reclamando o posto no camarote dos coitados, comentando sobre os problemas de Ibiza, que ficou muito cara e simplesmente não tem moradias com valores possíveis para o staff de seus clubes. O documentário dedica várias linhas de seu roteiro ao drama da covid-19, época em que tiveram que fechar as portas e ver suas fortunas passarem por uma “gripezinha”, enquanto o mundo definhava.

Alguém do tal staff foi representado nas entrevistas? Não. Nenhum bartender, nenhum limpador de banheiro, nenhum segurança. Espere alguns minutos para ver os mesmos empresários comentando, com sorriso de canto de boca, sobre um ricaço desconhecido que gastou mais de 20 mil euros em seu clube durante três horas festando. Contando sobre as “experiências diferenciadas” que propõem a seus clientes, compatíveis “às suas exigências quando vêm a Ibiza”. Se colocam como vítimas de um monstro que eles mesmo criaram.

Há décadas, Ibiza se tornou, ao mesmo tempo, um exemplo do estresse capitalista e uma fotografia do que existe de pior no cenário da música eletrônica. Um lugar cujo fluxo turístico se divide entre os super-ricos, que chegam em seus iates e jatos particulares, e os simplesmente ricos, que viajam para curtir o “sentimento de liberdade” hedonista que a ilha promove, graças a seus muitos clubes, resorts e praias.

Mesmo impondo duras regras aos aluguéis de curta temporada (que você conhece como Airbnb), não se encontram apartamentos simples para morar. Como o fervo só funciona no verão, tendo 80% de seus clubes fechados em outras estações do ano, quem mora e trabalha por lá sofre, independentemente se o clima estiver quente e ensolarado ou frio e nebuloso. O custo de vida, que já era alto, explodiu depois da pandemia. Enquanto isso, os profissionais da noite, incluindo DJs, contam como investem cada vez mais em seus sistema de som, luz e serviço, para vencer a competição e atrair o maior número de “wealthies” (“ricos”, uma das palavras mais usadas no documentário).

Em dado momento, o documentário comete um erro comum entre uma imensa parte dos apreciadores do universo da música eletrônica, a conceituação de “underground”. Um pensamento de que basta reduzir o break de uma música e tirar o vocal cafona e pronto: já fazem parte do seleto e secreto mundo onde tudo acontece. Não é bem assim que a banda toca, amigos. Se não tem periférico na pista, na cabine do DJ, na produção e na administração, não é underground. Se não tem excluído provocando o status quo, contestando e, principalmente, chocando, não é. Se não há granadas sendo lançadas contra o muro que divide a casta branca e endinheirada da favela, não é underground.

Underground. Coisa que, no âmago, Ibiza nunca foi. É realmente belo o sentimento de liberdade encrustado em suas vielas. Quando a ditadura militar do cruel Franco assolou a Espanha entre 1936 e 1973, Ibiza era tão insignificante que foi esquecida pelo governo. Longe das tropa torturadoras, o local acabou sendo refúgio de artistas que fugiam da repressão. Mas a verve contestadora parou por aí, tanto que a ilha jamais serviu como propulsora de ideias ou de contestação do sistema. Era mais um lugar de fuga.

DJ Alfredo. Imagem: Reprodução/YouTube

Foi invadida, nos anos 70, por herdeiros que se sentiam bem em meio à cultura hippie (já derrocada desde o final dos anos 60, em sua terra natal) e, na década seguinte, pelo povo da moda, as celebridades e os artistas mais festeiros. Ainda assim, era um lugar de turismo barato, se comparado a outros mais estabelecidos na Europa.

Inexplicavelmente, o documentário deixa passar totalmente em branco a mais importante contribuição de Ibiza para a música eletrônica: a ajuda primordial na invenção da acid house. Na aurora dos anos 80, o DJ argentino Alfredo era residente do clube Amnesia em Ibiza. Foi lá que os garotos Paul Oakenfold, Danny Rampling, Nick Holloway e Johnnie Walker caíram de quatro para uma nova mistura de sons, proposta por Alfredo em sets que duram sete horas.

Nascido na Argentina, Alfredo Fiorito misturava o indie rock hipnótico de bandas como Waterboys e The Woodentops com synth-pop, Peter Gabriel com a house de Chicago e mais o que lhe apetecesse para criar um clima derretido e praieiro em suas discotecagens, som que foi rotulado posteriormente como balearic beat (ou balearic house). Oakenfold e sua turma voltaram para a Londres e ajudaram a criar a música do movimento acid house.

Pelo jeito, isso não importa muito para The Evolution of Ibiza. Mais vale promover o mea culpa empresarial e clamar pela utopia de um equilíbrio bem-resolvido entre os que pagam para serem servidos e os que recebem para servir.

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