Primavera Sound, Lollapalooza, Rock in Rio e C6 Fest bombam todos os anos no Brasil. Mas quais foram os pioneiros?
No Brasil pós-pandêmico, centenas de festivais alimentaram o público ávido por música e shows. Marcas brasileiras e franquias internacionais tomaram conta do calendário, gerando inclusive um alerta de que tinha muito ingresso para pouco dinheiro, em 2024.
Além de ser dono de um dos maiores festivais do mundo, como o Rock in Rio, o país já é responsável pelo segundo maior público de alguns festivais gringos, perdendo somente para suas terras natais — caso dos eletrônicos Time Warp e Tomorrowland. Grandes empresas se estapeiam para patrocinar estes megaeventos, dando musculatura para que consigam trazer ao país os maiores nomes do pop internacional.
Mas nem sempre foi assim. Se hoje produtoras firmam parcerias com prefeituras e governos para garantir sua agenda, houve um dia em que, para trazer um festival, era preciso muito jogo de cintura e assumir o risco de ir para a cadeia com o carimbo de subversivo ou terrorista na testa.
Colocando um pé para fora do cardápio de eventos milionários hoje em dia e olhando para o passado, fica a pergunta: quais foram os primeiros festivais brasileiros?
Festivais e festivais
Para começar nossa jornada arqueológica, é preciso antes explicar alguns critérios. Estamos falando de festivais nos moldes do que vemos hoje, em que uma equipe de curadores convida artistas de diversos estilos musicais diferentes para um evento com vários shows.
Isso porque, desde a década de 60, TVs e rádios brasileiras produziam seus Festivais da Canção, que todo mundo conhece através das clássicas gravações de artistas como Chico Buarque, Elis Regina e Jair Rodrigues se apresentando para um auditório animadíssimo, em busca do primeiro lugar.
Apesar de também serem chamados de festivais, não se tratava do mesmo tipo de rolê. Criados primeiramente para a rádio e, a partir de 1966, transmitidos para a novíssima TV, os também chamados Festivais de Música Popular Brasileira (daí veio o tão usado termo MPB) tratavam-se, na verdade, de um concurso. Um campeonato de músicas previamente inscritas pelos compositores. A produção, então, escolhia entre os jovens e carismáticos novos ídolos da música para interpretarem as canções concorrentes na na frente de um corpo de jurados e, principalmente, um público animado e torcedor.
O Brasil antes do Rock in Rio
Em 1985, aproveitando o processo de redemocratização do país, o empresário de shows Roberto Medina teve a ideia de sair na frente fazendo o primeiro festival de rock no Brasil com força para trazer ao país um timaço de superestrelas da música. O público que esteve na primeira “Cidade do Rock”, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, pôde assistir, no maior palco já montado no mundo, especial para o evento, nomes como Iron Maiden, Scorpions e o histórico show do Queen, com uma multidão cantando para um espantado Freddie Mercury a balada Love Of My Life.
Antes do Rock in Rio, artistas internacionais vinham ao país para shows solo, mas a turma de estrelas do pop torcia o nariz para toda a América do Sul. Ao apresentar uma inédita estrutura de palco e uma programação com o que havia de mais bombado no rock e pop mundial, o festival carioca recebeu o título de divisor de águas histórico no continente.
Mas apesar de nascer gigante, o Rock in Rio não foi o primeiro. Dez anos antes, no meio da Ditadura Militar, a inconsequência da juventude fazia nascer a era dos festivais de música no país.
Os pioneiros do Brasil
A repercussão do lendário festival Woodstock Music & Arts Fair, realizado em uma fazenda no estado de Nova Iorque em 1969, foi chegando aos poucos no Brasil, graças a histórias contadas por fãs de rock antenados e à imprensa. O revolucionário evento que uniu grandes lendas do rock, como Jimi Hendrix, The Who, Janis Joplin, Joan Baez e um time de mais de 20 artistas, apresentou ao mundo a força da contracultura americana.
Demorou seis anos para o que o Brasil tivesse seu “Woodstock brasileiro”, como ficou conhecido o Festival de Águas Claras, em Iacanga, interior de São Paulo. E, ao contrário do primo rico, nem era para ser um festival. Antonio Checchin Junior, o Leivinha, tinha apenas 22 anos e resolveu promover um encontro com amigos na fazenda de sua família para apresentar sua peça de teatro. Com o apoio dos irmãos e primos (e romanticamente inspirados no Woodstock), uma ideia foi pintando aqui, outra ali, e quando se deram conta, a turma realizava o primeiro festival de rock brasileiro, com acampamento, hippies nadando pelados no lago, e toda aquela energia paz & amor da malucada da época. Em plena Ditadura Militar.
O evento, divulgado na base do boca a boca por quem gostava de música, reuniu entre 15 e 20 mil pessoas. Impossível saber a quantidade de público com exatidão, já que menos de cinco mil ingressos foram vendidos. O resto do povo pulou a cerca e acampou de graça. Entre os dia 17 e 19 de janeiro de 1975, a nata do rock underground brasileiro passou pelo festival: Os Mutantes, Jorge Mautner, Walter Franco, Ursa Maior, Moto Perpétuo, entre outras.
E se a divulgação orgânica já estava grande antes do festival, ficou ainda maior depois que a polícia do governo militar caiu em cima da família de Leivinha, tentando entender o que reuniu tanta gente junta no meio do mato. O Festival de Águas Claras repercutiu tanto nos principais jornais e revistas da época, que quando o grupo conseguiu autorização para fazer a segunda edição, apenas em 1981, empresários ligavam para o produtor, oferecendo seus artistas para tocar de graça.
A resposta carioca
De olho no que havia acabado de acontecer em São Paulo, o articulador cultural Nelson Motta resolveu dar uma resposta carioca ao Festival de Águas Claras. No lugar de fazenda, a areia da praia. Motta e sua turma se juntaram na casa do cantor Serguei, que morava no paraíso dos surfistas, Saquarema, para aproveitar a segunda edição do campeonato de surf local e adicionar música e um bando de malucos, transformando o evento no Som, Sol e Surf, em 1976. Nascia o segundo festival de música jovem brasileiro, com a presença de artistas como Raul Seixas, Angela Ro Ro e Rita Lee.
Assim como o irmão paulista, a grande novidade saiu do controle, juntou muito mais gente do que comportava e assanhou as garras da polícia. Repercutiu no Brasil inteiro e se tornou um marco histórico da música brasileira. Porém, ao contrário do primo paulista, não teve uma segunda edição.
Deixando a malucada em paz
Em paranoicos tempos onde tudo era “terrorismo”, a surpresa causada pelo sucesso repentino de público dos festivais de Iacanga e Saquarema deixou a polícia política brasileira de cabelo em pé. Reconhecidamente tacanhas (afinal, de que outra forma trabalhariam para a Ditadura?), os polícias do DOPS, a Delegacia de Ordem Política e Social, não entenderam nada do que estava acontecendo. Gente pelada nadando no lago era uma ameaça à ordem vigente? E os cigarros de maconha? Na dúvida, o melhor era cair de pau em cima.
A confusão da Ditadura Militar em compreender aquele movimento foi tão grande, que a própria molecada responsável por Iacanga foi a Brasília e conseguiu liberar o festival, cinco anos depois, para mais uma série de edições que se tornaram históricas (todas antes do primeiro Rock in Rio). O festival chegou a ter o improvável João Gilberto em seu lineup, em apresentação que se tornou notória como uma das melhores da carreira do artista.
As duas histórias são brilhantemente contadas em dois documentários indispensáveis para quem gosta de música, festivais e história. Som Sol e Surf – Saquarema, de 2018, dirigido por Hélio Pitanga, e O Barato de Iacanga, lançado em 2019 com direção de Thiago Mattar.