Chic Show Baile da Chic Show no Palmeiras. Foto: Penna Prearo/Divulgação

Quando a música preta conquistou o Palmeiras: a história da Chic Show

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Maior festa black do Brasil celebra 50 anos com Lauryn Hill, Wyclef Jean, YG Marley e diversas outras atrações

“O preto quer balançar. O preto precisa se divertir.” De terno branco, camisa vinho com longas lapelas pontudas, cabelo black power muito bem tratado e microfone prateado na mão, Luizão, o criador da equipe de baile Chic Show, discursava, em entrevista para a TV.

A rua Turiassú estava apinhada de gente, de todos os cantos de São Paulo, orgulhosos de seus cabelos, de suas roupas, tentando entrar no clube do Palmeiras, já lotado. Jorge Ben se preparava para entrar no palco. Tudo aquilo acontecendo durante os anos de chumbo, em 1974, a fase mais violenta e repressora da ditadura militar.

“O nosso movimento não é só americanizado. Nosso movimento traz as raízes da África, engloba os problemas africanos, problemas brasileiros, de como a nossa raça chegou no Brasil, os problemas dos índios, de todo aquele sofrimento. Trazemos tudo isso. Existe o Jorge Ben. E existe o Jorge Ben na Chic Show”, segue Luizão.

Trecho do documentário Chic Show, disponível no Globoplay

O baile que celebra os 50 anos da Chic Show acontecerá no moderno novo estádio do mesmo Palmeiras, o Allianz Parque, trazendo Lauryn Hill, Wyclef Jean e YG Marley (que se apresentaram recentemente no Coachella) como headliners. O evento será a festa de bodas de ouro de um casamento que começou por perseverança do apaixonado produtor.

Então “um clube de brancos”, como ele mesmo dizia, Luizão queria que o primeiro show de sua equipe fosse no clube da Sociedade Esportiva Palmeiras. “Era um lugar onde todo negro queria ir.” A diretoria, então, resolveu abrir espaço para o primeiro evento produzido pela equipe, que já era a maior de São Paulo em 1974. E se já era grande, depois da união com o Palestra, ficou gigante.

Chic Show

Imagem: Reprodução [via Contexto]

Chic Show

Imagem: Reprodução [via Contexto]

Depois de Ben, a Chic Show simplesmente perdeu o medo. Tim Maia, Earth, Wind & Fire, Parliament Funkadelic, James Brown e diversos outros ícones da música negra colando no clube de Perdizes para shows lendários e lotados. Tudo isso na completa marginalidade. Sem grandes patrocinadores. Sem apoio do governo, sem parcerias com festivais. No talento, na unha — ou melhor, na raça! A raça negra.

“Era um quilombo no centro de São Paulo”, declarou o historiador e dançarino King Nino Brown ao Jornal Contexto.

Curiosamente, os arquivos, fotos e vídeos históricos desses bailes estão geralmente restritos a publicações dedicadas a torcedores e sócios do Palmeiras. Não pode! Sua odisseia precisa ser conhecida por qualquer um que goste do “balanço”. Em seu livro, Todo DJ Já Sambou, Claudia Assef conta essa história.

A Chic Show por Claudia Assef

Chic Show

Foto: Acervo Chic Show

Enquanto no Centro e nos Jardins só se falava em discotecas da moda, onde a classe mais abastada dançava ao som de hits da disco music, nos bairros mais afastados os salões de baile ferviam com milhares de dançarinos dividindo a mesma pista. No lugar de DJs, o que atraía as pessoas para a festa era o nome da equipe de baile que a promovia. A mais famosa delas, a Chic Show, foi fundada em 1973 e tornou-se uma instituição black em São Paulo, sinônimo de entretenimento musical de qualidade.

Luizão, o fundador da Chic Show, conta que as equipes de bailes black dos anos 70 surgiram quando as orquestras invisíveis começaram a soar repetitivas. “A gente gostava, frequentava até, mas achava que aquilo era música de velho”, diz Luizão.

Colecionador de discos, ele próprio começou a dar som em festas de aniversário, que no início ficaram conhecidas como “discoteca do Luizão”. “O pessoal mais jovem estava mais a fim de dançar James Brown e Aretha Franklyn, aquele som de grande orquestra não era para a gente”, justifica. “Sempre quis tocar coisas novas. Acho que todo DJ tem essa ansiedade pelo moderno, uma vontade de tocar a música que se ouve em Marte”, divaga o messias black.

A Chic Show começou a funcionar como equipe no salão da Cooperativa do Carvão, na zona oeste de São Paulo. Depois passou pela Mansão Azul, no Jabaquara, e consagrou-se no lendário São Paulo Chic, na rua Brigadeiro Galvão. Ali, aos domingos, o baile da Chic Show reunia quase dois mil dançarinos. Uma das inovações que a equipe trazia era o par de pickups para os DJs, até então coisa inédita em bailes black.

Em 1975, com o início dos bailes no Palmeiras, que passavam a acomodar até 18 mil pessoas, a Chic Show se firmou como a maior equipe de São Paulo. Pela primeira vez, uma equipe usava lambe-lambe (cartazes de rua) para promover um baile, mídia que até hoje é tradição das festas black. Com show de Jorge Ben, a primeira festa no Palmeiras reuniu 12 mil pessoas.

O baile seguinte teve como artista convidado Tim Maia. Reza a lenda que havia 18 mil pagantes do lado de dentro e outras 40 mil pessoas do lado de fora, tentando entrar. A Chic Show gravava seu nome na história.

O principal DJ da Chic Show foi Natanael Valêncio, uma lenda absoluta da black music de São Paulo, que morreu em 2001. Ele teria sido o primeiro DJ de black music a tocar com a cortina do palco aberta num baile de orquestra invisível, no começo dos anos 70. Estudioso da cultura black, Natanael cursou até o terceiro ano de jornalismo e era, além de disc-jóquei, responsável pela comunicação da equipe.

Grandmaster Ney, um dos principais nomes da discotecagem black até hoje, também frequentou a escola da Chic Show. Ficou na equipe durante dois anos, depois de ter passado por uma concorrente forte, a Zimbabwe. “Normalmente, o DJ de black nascia e morria dentro da mesma equipe. Eu escolhi outro caminho. Passei pela Zimbabwe e pela Chic Show. Foi ótimo, mas escolhi não ficar eternamente numa equipe.”

O DJ Fábio Macari [in memoriam], que sempre se manteve à margem da indústria das equipes, acha que discotecários como Ney preferiram seguir “carreira solo” porque nunca foram valorizados em grupo. “O que tinha visibilidade para o público era a equipe. Não existia citar nome do DJ nos convites. Talvez os patrões achassem que, se o DJ ficasse famoso, ia abandoná-los. A gente conhece brigas históricas a esse respeito.”

Luizão, que começou como DJ, diz que a coisa não é bem assim. “O DJ sempre foi valorizado na Chic Show. O grande barato do verdadeiro discotecário é ver que um monte de gente reagiu com alegria a uma música que ele escolheu. É a sensação de ter apertado o botão certo e ter criado aquela vibração. Isso está no sangue. É o que estimula o DJ, não o nome em letras garrafais.”

Além da Zimbabwe (que mais tarde viraria o selo que lançou os Racionais MCs), outras equipes também tinham o seu espaço em São Paulo. As mais importantes foram Black Mad, Kaskata’s e Transanegra. “A Chic Show era líder, mas aí foram chegando novas equipes. Foi uma época de concorrência, normal que houvesse uma briga pelo público. Mas tudo dentro da maior amizade, sempre”, diz, diplomático, Luizão.

Grandmaster Ney acredita que o tino comercial de Luizão tenha sido fundamental para o sucesso da Chic Show: “Ele foi o primeiro negro a enxergar o mercado black como um bom negócio”.

Enquanto a concorrência aumentava, a Chic Show ia turbinando o cardápio musical de seus bailes. Em 1978, trouxe a primeira atração internacional, nada menos que James Brown, o rei da onda black power no mundo inteiro. Na discotecagem, surgia uma nova geração de DJs: Easy Nylon, Kitão e Luciano.

“Chegou um momento em que estávamos botando 80 mil pessoas para dançar por fim de semana. Chegamos a fazer 14 domingueiras de uma só vez, em várias cidades do interior, só com DJs e equipamentos da Chic Show”, recorda Luizão. Com a nova dimensão, o funcionamento dos negócios começou a fugir de controle. “Ganhamos dinheiro, claro. Mas com aquele tamanho estava difícil manter as rédeas.” Além dos bailes, a Chic Show estreou um programa de rádio na Bandeirantes, com apresentação de Luizão e produção do ícone Natanael Valêncio. “A Chic Show cresceu demais. O baile se tornou pouco. O rádio foi um sonho que se tornou realidade”, argumenta Luizão.

Ao longo dos anos 80, a Chic Show foi responsável pela vinda ao Brasil de pesos pesados da black music americana, como Gloria Gaynor, Earth, Wind & Fire, Kurtis Blow e Cheryl Lynn. O caixa da equipe também engordou graças a uma montanha de compilações em LP que foram colocadas no mercado.

Naquela década, os bailes da Chic Show ganharam infraestrutura de megaevento. Enquanto vários DJs se revezavam nos toca-discos, os primeiros videoclipes de hip hop eram exibidos em telões. “Foi ali que muita gente viu pela primeira vez como se dançava o break. O povo chamava de ‘dança do robozinho’”, lembra o DJ Hum. “A gente não tinha onde buscar informação, então era fundamental ir aos bailes da Chic Show”, diz Hum, que integrou a primeira geração de DJs de hip hop de São Paulo.

A Chic Show encerrou as atividades no final de 1992. “Foi loucura o que a gente conseguiu fazer. Tentar repetir é como querer reproduzir o fenômeno dos Beatles. Não dá, já passou. Então é melhor guardar boas lembranças do que fazer alguma coisa mais ou menos”, acredita Luizão. Em 2017, a Chic Show ressurgiu com uma fanpage no Facebook, através da qual faz um programa com transmissão ao vivo às segunda-feiras, o Black in Love.

Serviço

Chic Show 50 anos

Data: 13/07/2024
Horário: A partir das 13h45 [abertura dos portões: 11h]
Local: Allianz Parque: Avenida Francisco Matarazzo, 1705 – Água Branca, São Paulo/SP
Atrações: Lauryn Hill, Wyclef Jean, YG Marley, Mano Brown, Criolo, Jimmy “Bo” Horne, Rael, Sandra Sá, DJ Luciano, DJ Preto Faria, DJ Grandmaster Ney
Ingressos: Venda a partir das 10h do dia 22 de abril via Tickets On

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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