O cinema em 2020: uma retrospectiva do que aconteceu nas telas em um ano cheio de desafios (e bons filmes)
O ano de 2020 mal começou e já se revelou cheio de novidades. A maior delas afetou intensamente a vida de todo o planeta. Estar em meio a uma pandemia mundial parecia algo possível apenas nos filmes, mas percebemos que a arte imita a vida. Com isso até o cinema precisou se adaptar aos novos tempos.
Para traçar uma retrospectiva de como as pessoas se relacionaram com o cinema nos últimos meses, listamos abaixo filmes que se destacaram em meio às opiniões de leitores. Entrevistamos críticos, produtores de conteúdo, curadores e cinéfilos para saber mais sobre a prática de assistir filmes em 2020.
A long time ago…
Quando falamos de ir ao cinema a sensação que fica para algumas pessoas é de que isso aconteceu há anos. Para aqueles que ainda não se sentem confortável em sair de casa, talvez os últimos filmes assistidos na telona tenham sido ou O Homem Invisível ou Aves de Rapina: Arlequina e Sua Emancipação Fantabulosa.
A produção da Blumhouse, adaptação do romance de H. G. Wells, contemporanizou a trama e trouxe como protagonista Cecília (Elizabeth Moss, em atuação impecável) sendo perseguida por seu ex-marido abusivo. Já a aventura da DC Universe excluiu o Coringa da história e focou na Arlequina. O longa protagonizado por Margot Robbie arrecadou bilheteria menor que a esperada, mas não trouxe prejuízo aos estúdios. Mesmo desapontando os fãs mais exigentes foi um título elogia pela crítica por retirar da tela as roupas e tons eróticos que rondavam os corpos das personagens femininas.
O Oscar e seus destaques
Destro da normalidade esperada, no fim do ano ocorre a temporada da Copa dos cinéfilos. Vários festivais acontecem e começam a delimitar quais filmes poderão concorrer ao Oscar. Neste ano que se encerra títulos como 1917, Era Uma Vez em… Hollywood e O Irlandês eram citados em várias previsões como os preferidos nas principais categorias. Mas, como esse ano não é para principiantes a maior premiação do cinema estadunidense nos surpreendeu com a vitória do coreano Bong Joon Ho nas categorias de Melhor Direção, Melhor Filme em Língua Estrangeira e Melhor Filme.
Seu longa Parasita foi sucesso absoluto e desbancou diretores como o consagrado Martin Scorsese homenageado pelo sul-coreano em seu discurso. Narrando a história de uma família “alpinista habitacional” o filme de Joon Ho desvenda a crise financeira e de moradia do país. Em uma trama que oscila entre cenas cômicas e muita tensão sem perder seu ritmo.
Outro destaque do Oscar é o documentário Honeyland documentário que se parece com ficção. De maneira poética Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska narram a história de Hatidze, uma mulher misteriosa que nunca fala com a, mas diz muito sobre a relação do ser humano com a natureza.
Os cinemas fecharam! Como foi que ficamos?
Em conversa com Cleiton Lopes, pesquisador e crítico de cinema, do portal Cinemascope, ele apontou que o cenário pandêmico chegou em um ponto que “ir ao cinema era a garantia de colocar a si, familiares e funcionários em risco”. Sua escolha foi a de ficar em casa, tranquilo, assistindo aos clássicos de sua coleção ou os títulos disponíveis nos streamings.
Dentre seus títulos preferidos estão produções da Netflix. São eles Mank, obra mais recente de David Fincher sobre os bastidores do clássico Cidadão Kane e Destacamento Blood, de Spike Lee, no qual Chadwick Boseman, falecido em agosto fez uma de suas últimas aparições. O advogado capixaba Jonatas Rueda também aponta os títulos como alguns dos melhores do ano, mas encabeça sua lista com Joias Brutas, de Josh e Ben Safdie, com o comediante Adam Sandler no elenco.
Apesar de contar com Sandler no elenco o filme é um suspense ambientado em meio a jogatina, apostas e agiotagem. O ator entrega uma interpretação bem diferente do que estamos acostumados a ver em tela. Para Jonatas o ritmo frenético do filme ressalta a ansiedade do personagem inquietando também o espectador.
Reabertura dos cinemas: o quanto nos sentimos seguros
Antes dos cinemas serem reabertos as empresas e distribuidoras de filmes fizeram uma séries de pesquisas com os produtores de conteúdo e representante de portais de cinema, que assistem aos filmes nas cabines de imprensa. Segundo Ítalo Passos, crítico do site Clube da Poltrona. Para ele enquanto os protocolos estão sendo seguidos o retorno está acontecendo de maneira segura.
Em Fortaleza, cidade em que mora, “as salas estão bem ordenadas”, ressalta. “O limite está sendo mantido tanto na quantidade de lugares disponíveis assim como o distanciamento, não apenas nas laterais, mas também entre fileiras”. Ainda assim ele aponta que no dia em que eu ver alguém quebrando o protocolo, ou a sala cheia demais, para de ir às sessões, sejam elas para o público ou para jornalistas.
Desde a reabertura das salas alguns títulos muito esperados vêm sendo exibidos. Um deles e Tenet do diretor Christopher Nolan. O filme protagonizado por John David Washington é mais um dos quebra-cabeças do diretor em tela. O título sofreu ao ter sua estreia adiada várias vezes ao longo do ano e sofre agora com a crítica que não parece estar muito satisfeita com o resultado.
No entanto, nesse fim de semana, a heroína mais querida da DC volta aos cinemas em Mulher Maravilha 1984, novamente sob a direção de Patty Jenkins. Em um filme tomado pela estética oitentista a super mulher volta a enfrentar vilões, ou melhor, uma vilã, em meio a Guerra Fria.
E agora!? Será que o cinema está morrendo?
Diante de um aumento de casos e da previsão de uma nova onda o receio de estar em ambientes fechados permanece. Assim, produtoras anunciaram que futuramente o lançamento de filmes acontecerá no cinema em paralelo as plataformas de streamings.
Para Cleiton Lopes a tendência é que “daqui para frente, o ‘cinemão’ vai entrar de vez nessa onda sendo lançado simultaneamente nos cinemas e nas plataformas digitais ou com um tempo muito curto entre um e outro”. Ele acredita que “o cinema não vai acabar, mas vai criar públicos diferentes e acredito que vai ser um fator importante para facilitar o acesso de forma mais eficiente para quem mora longe dos grandes centros ou não tem cinema em sua cidade”.
Márcia Freitas, advogada acredita que nada substituirá a experiência do cinema. Segundo ela “Acho também que, em geral, os artistas fazem os filmes para o cinema. Ali que tem a expressão artística que o diretor queria alcançar. Então perde-se muito ao assistir filmes na TV, tablet, notebook ou celular. Sequer a qualidade da imersão, do som e do impacto visual são comparáveis. É uma experiência totalmente distinta.”
Outro fator que incomoda aqueles que amam as salas de cinema é a ausência da interação social. Márcia conta que por morar na capital São Paulo tem sempre a oportunidade de ir a inúmeras mostras. Para ela farão falta os momentos de discussões nas mostras, com os próprios realizadores, diretores e artistas dos filmes, que podem demonstrar nesses momentos sua emoção ao se deparar com a reação do público a suas obras. “Aprendi muito, muito, com várias pessoas que ia conhecendo pelos corredores dos cinemas. Para mim as melhores dicas de filmes vinham daí, não tanto dos artigos publicados nos sites e jornais.”
Festivais digitais de cinema: uma estratégia para driblar o isolamento
A maneira encontrada pelos festivais foram converter suas exibições presenciais em virtuais. Fomos bombardeados por inúmeros festivais, mostras e eventos de cinema sendo exibidos em diversas plataformas. O casal produtor de conteúdo Tati Regis e Queops Negronski, de Pernambuco, explicam que “a exibição desses eventos pela rede nos permitiu acompanhar festivais que conhecemos, mas não presenciamos. Neste ano estivemos ‘presentes’ na mostra macaBRo, no Fantaspoa, de Porto Alegre, a Mostra CRASH e o Morce-GO Vermelho Fest, de Goiás, eventos que ficam distantes de nós, fisicamente.”
Já Márcia Deretti, cineasta e curadora da Mostra CRASH, conta que nunca pensou e realizar um evento como a CRASH de forma totalmente online. “Confesso que essa era uma perspectiva bem desanimadora que a pandemia nos obrigou a colocar no radar. Os festivais têm essa função fundamental de promover encontros e trocas, que podem começar numa sala de cinema e, de preferência, terminar em uma mesa de bar.” Por outro lado o formato online fez com que o alcance do festival fosse muito maior, diz Márcia, e também aponta que o fato do formato ser recorrente ao longo do ano o público da mostra não foi surpreendido.
A adesão foi muito boa, alcançando pessoas em muitas partes do país, que sequer conheciam o evento que em 2020 chegou em sua 12ª edição. A curadora conta que retorno do público foi emocionante, pessoas expressaram sua gratidão por participarem da mostra, algo que talvez não fosse possível se as atividades fossem presenciais. Porém há algumas dificuldades a serem enfrentadas e uma delas é “ficar totalmente a mercê dos aparatos tecnológicos, cujo funcionamento não depende só do investimento em estrutura ou de quem a opera” conta Márcia.
Novas relações com o cinema estão sendo criadas
Ao mesmo tempo experimentamos novas relações com mediadores e palestrantes. Deretti conta que Rodrigo Aragão “deu aula no quintal de casa com os cachorros em volta e a família passando no fundo. Nosso tradutor deu um beijo de boa noite na filha no meio de uma live. Algumas alunos assistiram às aulas deitadas nas suas camas já de pijamas. Foram situações que traziam uma sensação estranha de proximidade”.
Para Márcia Deretti esse não é um formato a ser adotado daqui pra frente. Após superarmos o momento ela aponta que “precisamos estar juntos e aglomerados em carne e osso para aguentarmos e ficarmos forte”. Porém fica óbvio que a mostra não será mais a mesma. “Essa experiência nos fez perceber que é importante pensarmos no formato online para as próximas edições. Nos interessa ter uma abrangência maior e democratizar ainda mais as nossas atividades. Provavelmente faremos algo híbrido.”
Márcia Araújo aponta também o quanto a disponibilização de filmes online e a preços mais acessíveis, aumentou a acessibilidade. Tati e Queops concordam que agora é importante as curadorias e criarem uma solução de meio termo.
Considerando os festivais acompanhados Márcia indica Não há mal algum, de Mohammad Rasoulof, 17 Quadras, documentário de Davy Rothbart e Mosquito, de João Nunes Pinto. Tati e Queops apontam que dentre seus preferidos estão Diablo Rojo primeiro filme de terror panamenho, dirigido por Sol Moreno, o curta Jêróme – Um Conto de Natal, de Beatriz Saldanha e His House, produção da Netflix.
O que podemos perceber é que o cinema está passando por mudanças tanto nos bastidores quanto na recepção com o público. Estamos presenciando o início de algumas mudanças na indústria da sétima arte.