Se antes a corrida espacial era protagonizada por potências mundiais, agora a competição está rolando entre empresas, gravadoras e artistas
A sonda Odysseus, que pousou recentemente pousou na Lua (a primeira desde 1972, e sob o comando de uma empresa privada, a SpaceX, de Elon Musk) levou consigo, parafusada no lado externo de seu casco, uma espécie de HD que armazena em formato digital uma porção de canções feitas aqui na Terra, de Timbaland a Jimi Hendrix. A nova “cápsula do tempo” também guarda documentários sobre a raça humana e eventos climáticos, já dando a pinta do futuro que nos espera.
A ideia é que, em um futuro distante, caso alguma raça alienígena encontre o tesouro e seja capaz de decodificá-la, seja possível entender como era a vida no planeta, com um destaque interessante para nossa produção artística. Criar é uma das principais características que nos difere dos animais e, exceto haja uma evolução considerável na tecnologia de Inteligência Artificial, exclusiva da nossa galera aqui no planeta. A biblioteca digital grudada na Odysseus tem até mesmo fotos de festivais de música em seu acervo, com o lendário Woodstock.
A ideia não é nova. E é inerente ao ego sideral do ser humano, aliado a uma incômoda certeza de que nossa raça não vai durar muito no planeta. A iminência do dia do juízo final tem transformado em moda mandar nossa música, além da lua, para outras galáxias.
Antes de mais nada, é importante lembrar que, mesmo involuntariamente, estamos mandando música para os confins do universo há muito tempo. Afinal, as ondas de rádio geradas pelas estações comuns atravessam a estratosfera e têm a capacidade de vagar perdidas por aí, inundando o espaço com programas de pastores, propagandas e jogos de futebol. O grande barato é que tais ondas precisam de décadas de viagem para para estrapolar a via láctea e chegar a planetas distantes. Isso significa que, em algum lugar do universo, um alienígena pode estar limpando a casa enquanto ouve os crimes do Gil Gomes, o programa do Zé Béttio ou torce pelo Brasil na final da Copa do Mundo de 1958.
A primeira iniciativa planejada para explicar a outras raças inteligentes como é a vida aqui no planeta partiu da NASA, no projeto dos míticos Golden Records, dois discos de ouro parafusados na carapaça das sondas Voyager I e II, lançadas no espaço em 1977. A agência espacial americana convocou ninguém menos do que Carl Sagan, astrônomo rockstar e maior divulgador do tema para as pessoas leigas.
Sagan reuniu uma equipe para bolar um jeito de armazenar informações importantes e, principalmente, possíveis de serem interpretadas. Chegaram a uma conclusão sensacional. A melhor, mais simples e mais duradoura forma de fazer com que uma mídia atravessasse o universo era o bom e velho disco de vinil. Como a matéria prima original das bolachas obviamente derreteria durante o percusso, Sagan mandou prensar um disco feito em ouro maciço. Além das duas cópias idênticas do disco mais importante da história humana, o astrônomo também enviou uma agulha e instruções gravadas em símbolos, meio que como hierógrafos, sobre rotação correta e a forma de botar para rodar o “Raça Humana Greatest Hits”.
O Voyager Golden Record contém saudações em 55 idiomas (terrestres) diferentes, discursos de presidentes, imagens e sons da natureza, além de claro, nossa música: de Mozart a Chuck Berry. Trazendo a história para o universo do Music Non Stop, dá para dizer que, graças à curadoria e à importância do disco, Carl Sagan pode ser considerado o DJ mais importante da história da humanidade.
As duas Voyager seguem vagando pelo espaço, já tendo cruzado as fronteiras da Via Láctea. Más, entre o projeto oficial da NASA e a coletânea patrocinada por Elon Musk, os próprios artistas entraram na pira espacial e resolveram, por conta própria, se autoelegerem relevantes o suficiente para se apresentar como dignos representantes da música humana, garantindo para seus herdeiros futuros royalties interplanetários.
Embora a música tenha acompanhado os astronautas desde suas primeiras viagens em órbita pela Terra (não houve um só lançamento em que o pessoal não tenha levado música de seu país para tocar e transmitir, por rádio, a bordo das espaçonaves), grandes músicos trataram de se enfiar na programação das viagens. O Pink Floyd gaba-se de ter sido a primeira a banda a compor uma obra especialmente para ser tocada do espaço: o disco Delicate Sound Of Thunder, que viajou junto com a soviética Soyus TM-7, em 1988. Dois integrantes da banda, David Gilmour e Nick Manson, chegaram a acompanhar o lançamento e gravaram os áudios da sala de controle.
Os britânicos do Blur trataram de (tentar) ir além. Armaram com a empresa compatriota Beagle para ter uma de suas músicas tocada diretamente de Marte, no momento em que a sonda Beagle 2 pousaria no planeta, 11 anos após seu lançamento, em 2003. Detalhe é que a sonda se perdeu nove anos antes de chegar ao seu destino, e nunca mais se comunicou com a base. Para protagonizar uma história como esta, seria muito melhor que os cientistas britânicos tivessem escolhido Space Oddity, de David Bowie. A música conta a história de um astronauta que decide não voltar para a Terra e se perder no espaço. A canção de Bowie acabou ganhando um prêmio de consolação: foi gravada pelo astronauta Chris Hadfield dentro da estação espacial Commander junto com outra dez canções, que integraram o álbum Space Sessions: Songs from a Tin Can, de 2015.
O troféu de primeira música tocada em Marte acabou ficando para estadunidense will.i.am, do Black Eyed Peas, que emplacou uma composição exclusiva, Reach For The Stars, no quadricículo espacial Curiosity Rover, que efetivamente pousou em Marte em agosto de 2012.
Não podia faltar, claro, a Taylor Swift. Em mais uma mostra de sua reconhecida modéstia, a cantora fez questão de autografar a lataria do Projeto DaVinci, uma cápsula do tempo contendo seu álbum 1989 (entre vários outros, de artistas do planeta) que foi colocada na órbita do Planeta Terra para um dia ser resgatada por algum fã alienígena ou cair de volta ao planeta em um futuro distante, surgindo como um guia arqueológico para as futuras gerações.
Outro artista chegado em um marketing galáctico, o Coldplay lançou seu single Higher Power diretamente da Estação Espacial Internacional, evento que chamou de “primeiro lançamento extraterrestre” de um artista humano. Os reis do K-Pop, BTS, e a banda de rock japonesa Sakanaction também já se enfiaram em programas espaciais de seus países de origem.
Como não poderia deixar de ser, a porteira foi aberta para os projetos mais estranhos e duvidosos. Uma empresa responsável por um “museu lunar” acoplado à SpaceX gabou-se de pousar na Lua, em 2022, uma coleção de 222 artistas (cuja lista jamais foi trazida à público), que ganharam um NFT para comercializar seu feito por aqui. O obscuro projeto, em seu website, vende vagas futuras na coleção do Lunaprise Museum, de 35 a 99 dólares, sem explicar muito bem como se dará o upload para o arquivo lunar.
Outra organização ligada ao projeto, a Arch Mission Foundation promete fazer um backup da cultura terrestre na Lua (como parte do Lunaprise), com mais de 30 milhões de páginas digitais daquilo que considera o “legado cultural galáctico” da nossa raça. Em comunicado à imprensa, a fundação afirma que todas as páginas da Wikipedia (em inglês) estão sendo adicionadas à biblioteca, “uma quantidade gigantesca de música” e até mesmo, pasmen, os segredos por trás das ilusões de David Cooperfield.
Se antes a corrida espacial era protagonizada por potências mundiais como Estados Unidos, Rússia e China, agora a competição está rolando entre empresas, gravadoras e artistas. Tudo para levar ao espaço obras que, segundo especialistas, têm uma probabilidade mínima de serem encontradas e decodificadas por raças inteligentes que porventura existam no espaço.