Não estamos sendo lenientes demais?
Na madrugada de domingo (10), João Vinícius Ferreira Simões, de 25 anos, veio a óbito depois de receber uma carga elétrica ao encostar em um trailer de alimentação no Riocentro, durante a edição carioca do festival I Wanna Be Tour.
Em novembro, no mesmo Rio de Janeiro, vimos a morte de Ana Clara Benevides, de 23 anos, por exaustão térmica, no meio de uma multidão de jovens, em um calor causticante e sem acesso fácil à agua gelada. Ela estava lá para curtir o show de Taylor Swift.
Em apenas quatro meses, dois jovens, cheios de vida e amantes de música, foram levados de suas famílias, em eventos privados, cujos ingressos estão entre os mais caros do ano, inacessíveis à grande maioria dos brasileiros. Na estatística, ir a um festival já é mais perigoso do que estar dentro de um estádio de futebol, cuja violência é considerada endêmica em seus arredores.
Mais do que isso. Ana Clara e João Vinícius não estavam envolvidos em nenhuma briga de torcidas. Não fizeram abuso de drogas. Estavam ali, gastando uma nota preta para ter a tal “experiência” inesquecível. Foi, sim, inesquecível (da pior forma) para seus familiares e amigos. Não dá mais.
Estamos falando aqui dos casos ocorridos sem o comportamento de risco das vítimas, questões de saúde ou mesmo violência entre indivíduos. Com incômoda frequência, mortes acontecem em eventos com grande aglomeração, sem que seja possível prevê-las. Como o afogamento de um rapaz que tentou atravessar a nado o canal que separava a margem da represa Billings até a ilha onde acontecia a rave Fusion, no final dos anos 90, para tentar entrar na festa sem pagar ingresso; ou um funcionário de limpeza do Tomorrowland, encontrado morto em um caminhão de lixo em 2015. Há também situações de infartos e outros mal súbitos — tudo o que também poderia acontecer na rua, no trabalho ou no banheiro de casa.
Seria completamente desproposital conectar um evento a uma ocorrência desse tipo, claro. Há protocolos para tudo isso, envolvendo política, hospital e organizadores. Mas uma coisa, sim, faz falta: análise estatística e comprometimento dos órgãos públicos em atuar preventivamente.
Culpa do planeta?
Nos dois casos recentes, absolutamente não. Apesar de estar gritando sua saturação a todos os seres humanos, botar a culpa no aquecimento global é absurdo. O verão brasileiro sempre foi cruel, de calor extremo e chuvas implacáveis. Basta recuperar o inúmero histórico de tragédias ambientais que ocorrem nesta época do ano, várias em períodos de festas, como Natal e Réveillon. Não deveria ser uma surpresa para quem decide fazer eventos nos meses mais quentes e chuvosos do ano.
Em ambos os episódios, os acidentes foram provocados por condições climáticas. No primeiro, a organização do show de Swift é acusada de proibir a entrada com garrafas de água, cobrar caro por copinhos de água sem gelo e ainda colocar cercas de zinco em volta do palco para impedir que curiosos assistissem ao show do lado de fora, aumentando a sensação térmica. Na I Wanna Be Tour carioca, um food truck se transformou em uma bomba elétrica no meio do público.
Ainda estão debaixo do tapete as ocorrências que não resultaram em morte. Atendimentos em postos médicos gerados por falhas de estrutura, como um pé quebrado, por exemplo. A contabilidade é feita pelos próprios organizadores, e o público incrivelmente ainda se comporta como se fosse um acaso inevitável.
Onde o Corpo de Bombeiros entra nessa?
Para qualquer evento desse porte, é necessário um laudo (caríssimo) chamado AVCB, Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros. A produtora entrega aos Bombeiros um projeto, com todos os detalhes de infraestrutura. O projeto, então, é analisado, levando em conta somente questões de segurança do público, e adequações podem ser solicitadas. Depois de tudo aprovado, o local é vistoriado, momentos antes da data de início, para conferir se tudo foi montado conforme as especificações. Na teoria, se um evento tem seu AVCB, ele é seguro.
Obviamente, tem algo errado nesse processo. A própria definição legal do AVCB fala em “prevenção de incêndios e situações de pânico”. Dá a entender que focaliza sua atenção em situações que envolveriam muita gente procurando salvação ao mesmo tempo, que demandariam evacuação rápida. A lei é de 2011, dois anos antes do incêndio da boate Kiss, no Rio Grande do Sul, que resultou na morte de 242 pessoas.
Muita coisa está passando desapercebida pelos próprios órgãos de controle. Detalhes, como o correto aterramento elétrico ou a segurança térmica, nos casos de Ana Clara e João Vinícius. Ou a possibilidade de fraturas ao caminhar em terrenos irregulares, cheios de lama. Ou o esgotamento físico causado por horas de festival, com palcos distantes por quilômetros.
Já deu!
Está na hora de todo mundo começar a enxergar o que vem acontecendo com a importância que, de fato, tem. Esperar por uma morte para que algum aspecto de segurança em eventos aconteça já é errado, embora seja o padrão no Brasil, infelizmente. A impressão que temos, no entanto, é de que seja preciso mais para que alguma comoção transformadora seja causada, nos moldes do que aconteceu em Altamont (EUA), nos anos 60, durante show dos Rolling Stones.
Na ocasião, quatro pessoas morreram após uma briga causada pela gangue contratada pela própria produtora como equipe de segurança, os Hells Angels, aparentemente uma ideia “genial” para garantir a paz em shows de rock. Ainda que com certa relutância, a banda cancelou toda sua turnê americana. Por aqui, o que temos visto são notas de solidariedade em redes sociais, prometendo apoio à família e cooperação nas investigações.
Quando um acidente aéreo acontece, é obrigatória a abertura de uma investigação pelos órgãos competentes, não com o objetivo de procurar culpados, mas de identificar as causas da tragédia e impedir que ocorram novamente. Por que não agir da mesma forma com aglomerações?
Um protocolo do tipo ajudaria, mas seria produtivo ir mais além. Por que não trabalhar junto com os eventos — cada vez mais gigantes, com públicos maiores que cidades inteiras — para que sejam produzidos bons relatórios de atendimento em postos médicos e analisá-los estatisticamente, antecipando os pontos mais sensíveis das estruturas?
Mortes por desidratação ocorreram há décadas em festivais ingleses, e hoje, água gratuita, potável e na temperatura correta, é obrigatória até mesmo em pequenas casas noturnas. Mas a tragédia deles não serviu para nós. Precisou acontecer aqui também.
O momento é de alerta e discussão. O Music Non Stop vem falando bastante sobre isso, a ponto de elencar os erros que as produtoras de festivais tiveram de aprender, na marra, em 2023.
O ano de 2024 está repleto de festivais. E, também, de previsões de ondas de calor e chuvas intensas. A quantidade de ingressos colocados à venda aumenta cada vez mais, para que as produtoras fechem as contas dos line-ups imensos, e também tornem o produto mais apetitoso para as marcas patrocinadoras.
Uma receita perigosa que, com a atitude correta de todos os envolvidos, pode ser evitada.