Miúcha foi muito mais do que a irmã de Chico Buarque, aluna de Vinicius de Moraes e esposa de João Gilberto
Escrevo este texto com prazer sobre uma das mais importantes cantoras e compositoras do país. Filha, irmã e esposa de grandes nomes brasileiros e que, como em muitos casos envolvendo mulheres na indústria da música, Miúcha teve sua contribuição um tanto quanto negligenciada em comparação à dos homens de sua ilustre família.
Nascida em um meio rodeado de talentos musicais masculinos, Heloisa Maria Buarque de Holanda (1937–2018) iniciou a carreira com sua voz suave e expressiva nos anos 1960, cantando em bares. Sua técnica vocal excelente a permitia transitar facilmente entre diversos estilos, como samba, jazz e bossa nova.
Gravou e interpretou ao lado de diversos artistas renomados, incluindo João Donato, Edu Lobo, Tom Jobim (Miúcha & Antonio Carlos Jobim, 1977, e Tom Jobim & Miúcha, 1979), Vinicius de Moraes (Tom, Vinícius, Toquinho, Miúcha, 1977) e João Gilberto e Stan Getz (The Best of Two Worlds, 1976), entre outros.
Ao longo de uma carreira de mais de 40 anos, Miúcha alcançou seu merecido reconhecimento na música, mas também foi comumente lembrada ou citada como irmã de Chico Buarque, aluna de Vinicius de Moraes e, principalmente, esposa de João Gilberto.
O espírito intenso da artista e sua resiliência são retratados no premiado documentário Miúcha, a Voz da Bossa Nova, lançado em 2022. Dirigido por Liliane Mutti e Daniel Zarvos, o longa tem participação da sobrinha da cantora, Silvia Buarque, na leitura de cartas e trechos de diários originais. Resultado de uma ampla pesquisa do acervo próprio e de documentos da Cinemateca Brasileira, retrata as dificuldades de ser mulher e artista, das sabotagens do então marido João Gilberto à luta para alcançar o reconhecimento em um mundo tão masculino.
Ontem, 20 de fevereiro, o documentário teve uma exibição especial, seguida por debate com Mutti, para mulheres em situação de cárcere do presídio Fleury-Mérogis, maior complexo penitenciário da Europa. A casa de detenção, localizada na periferia de Paris, tem uma grande presença de mulheres de origem latina.
Todas as detentas têm acesso a filmes em lançamento graças à iniciativa da associação Lire C’ést Vivre, em parceria com o Centro Audiovisual Simone de Beauvoir. A ação leva cinema e debate para os presídios, permitindo uma abordagem artística e crítica, e já envolveu diversas cineastas como Agnès Varda e Maria de Medeiros, entre outras.
Nesta mesma semana, o filme será exibido no presídio masculino do mesmo complexo, com mediação do debate feita pelo critico de cinema Frédèrick Pagès. Mutti pontua que 10% dos presidiários da França estão detidos por crimes cometidos contra mulheres, e espera que a exibição possa mexer com os homens também.
O Centro Audiovisual Simone de Beauvoir é distribuidor de outros filmes feministas, sendo responsável pelas exibições na França, por exemplo, do filme Elle, Marielle Franco, da mesma diretora.
No Brasil, Miúcha, a Voz da Bossa Nova foi exibido em 2023 no Festival In-Edit, e está disponível no Globoplay.