O que explica o sucesso colossal de ‘Caju’, 2º álbum de Liniker
Disco é ápice de processo que vinha acontecendo há anos
Muita gente na equipe de Liniker, incluindo a própria artista, se assustou com a recepção de Caju, seu novo álbum, lançado no último dia 19 de agosto. Somadas, as audições das músicas bateram 30 milhões em apenas dez dias nas plataformas. A Deezer revelou que houve um aumento de nada menos que 899% nos plays da cantora. O boné com a capa do disco se esgotou em cinco minutos. Os ingressos para o show em São Paulo, marcado para 08 de novembro, acabaram na mesma velocidade, e ainda deixaram 50 mil pessoas na fila, animando-a para uma data extra, dia 13.
Realmente, uma avalanche de boas notícias que chegaram de repente. Mas, em muitas formas, não é nem um pouco surpreendente. Caju é muito mais um disco de consolidação da carreira (e do sucesso) de Liniker no mundo da black music brasileira. A validação de um trabalho bastante bem-feito desde 2016, quando começou a aparecer na vida de toda uma geração apadrinhada por nomes como Francisco, el Hombre, Supercombo, Johnny Hooker e Linn da Quebrada, que a convidaram para participações em singles antes que Liniker tivesse qualquer outra coisa lançada na carreira solo (como Liniker e os Caramelows, lançou seu primeiro EP, Cru, em 2015). Desde então, já se acostumou a frequentar a casa dos milhões de plays em suas músicas. São números que poucos conseguem, e que já a tiraram da turma do “midstream” há bastante tempo.
O tsunami de amor que vemos agora vem de um maremoto anterior que a gente mapeia acompanhando a intensidade do rolê da artista há quase uma década. Liniker gabaritou festivais de médio e grande porte no pós-pandemia. Isso ajuda, e muito. São nos festivais que um músico tem a chance de se mostrar para um público que não o conhece. E se o show vem com potência e carisma, passa-se o rodo em um monte de gente nova para sua base, que se refletiu no sucesso de Caju.
Nascida em Araraquara/SP, Liniker aliou trabalho duro e talento naquilo que se propôs a fazer. Atuou em um filme em que interpreta a si mesma, Bixa Travesty, em 2018, e depois em três séries de plataformas concorrentes entre 2018 e 2021: 3%, Manhãs de Setembro e Cara e Coragem. Foi sapecando prêmios que significavam, também, uma destruição de barreiras. A primeira travesti a ganhar um Grammy Latino (2022), e a primeira a receber convite para entregar a Academia Brasileira de Cultura, ocupando a cadeira que era de ninguém menos que Elza Soares. Uma conquista atrás da outra, non stop, e foram tantas as apresentações que a recepção a Caju, seu segundo álbum solo, passa a ser visto como algo não só esperado, como também merecido.
Não bastasse o corre pregresso, a obra tem outra sacada importante, que não pode passar despercebida: a autenticidade nas letras. Em especial na faixa-título (a mais ouvida até agora), a artista se abre de uma forma a apresentar a pessoa real que existe por trás da celebridade. Apela por valores comuns. Quem vai “buscá-la no aeroporto” ou “esperá-la quando chegar em casa”, em versos de busca pelo amor simples que todos tanto almejam, não importa como seja sua vida, qual sua classe social ou sua profissão. E o público ama essa conexão. Ajuda, mais uma vez, a concluir a demolição de preconceitos antiquados de que pessoas trans não têm os mesmos quereres de todos, no que diz respeito à tranquilidade, à estabilidade e aos relacionamentos.
Liniker sempre foi um míssil de transformação social. Na imagem, no corre e na música. Desconstrói na existência. E em Caju, não é diferente. Ao apresentar-se de forma tão pessoal e aberta em sua música, faz com que as pessoas se abram, baixem a guarda sem mesmo saber que o estão fazendo. É esse o grande segredo da recepção do novo álbum. Nada surpreendente.