Leo Janeiro Foto: Divulgação

Cocada, BRMC e D-EDGE: como Leo Janeiro ajudou a moldar a cena eletrônica brasileira

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Jota Wagner conversa com um dos personagens-chave do cenário eletrônico nacional

Leo Janeiro começou a vida na música dançante carregando caixas de som em equipes de baile. Foi “promovido” a DJ, se lançou a novos desafios, trabalhou em rádio e na filial da extinta gravadora Paradoxx no Rio. Tudo isso enquanto tentava tranquilizar a mãe que, como todas as outras, se preocupava com a falta de segurança do “viver de música”.

Hoje, ela pode se orgulhar. Leo se tornou uma espécie de arquiteto da cena carioca, com iniciativas como o BRMC, conferência carioca de música eletrônica, a gravadora Cocada, sua filha mais amada, e hoje (depois de ter passado pela alemã Get Digital), cuida da relação entre a distribuidora Label Worx, uma das maiores do planeta eletrônico, e o Brasil. Além disso, entra em 2025 como curador de um dos projetos mais bacanas do Rio de Janeiro, o Centro Cultural D-EDGE.

“Foi na D-EDGE que conheci muitos DJs que adoro”, conta o reponsável pela programação do club. O complexo todo, no centro da cidade, ainda conta com espaço para eventos, galeria de arte, restaurante e escola voltada a diversos segmentos artísticos.

Começamos nossa conversa com um Leo Janeiro reflexivo sobre a vida e a idade (está com 49 anos), um momento delicioso na jornada de cada um. Hora em que, entendendo melhor as regras do jogo, conseguimos fazer o próprio caminho, que deve passar pela generosidade e pelo compartilhamento do que aprendemos até aqui. É uma fase reconfortante, paternal. Cuidar das gerações que estão chegando é mais importante, e também mais prazeroso, do que passar a semana correndo atrás de uma gig para discotecar.

Não quer dizer que a pista de dança tenha saído da vida de Janeiro. “Agora posso dizer ‘não’, estar em lugares onde as pessoas realmente querem ouvir a minha música.” Mas, pela ótima conversa que você vai ler daqui a pouco, tudo em sua forma de pensar tem mais a ver com a construção de algo sólido dentro do mundo brasileiro da música eletrônica, para ser aproveitado pela energia dos mais jovens.

Com muito já feito e mais ainda por vir, falamos sobre a vida, mercado, as peculiariaridades dos brasileiros dançadores e muito mais. Desfrute!

Jota Wagner: Como é que está a sua vida?

Leo Janeiro: Estou naquela fase de equilibrar os pratos. Sempre fiz muita coisa. De 2015 pra cá, eu desenhei na minha cabeça que poderia fazer outros lances ligados à música. Todo mundo no nosso meio acaba olhando só para um lado da história. Ser DJ, ser produtor e tal. Isso é legal, mas a música te permite paradas diferentes. É um business que, quando você se conecta mesmo, vê várias coisas em que você pode se empenhar. E, além de tudo, aprender. Tem muitas ramificações, muita coisa acontecendo. Dá para ser DJ, trabalhar com distribuição, digital, ser dono de label… Eu também faço consultoria para quem está a fim de abrir um label.

Essa necessidade de mudar tem a ver com o fato de você ir ficando mais velho. Vai procurando outras fontes que você não tinha há, sei lá, 20 anos. No meio disso, também tem muita coisa que você precisa deixar ir. Eu já não tenho mais aquela coisa de tocar todo final de semana. Toco onde tem a ver com meu som. A idade me deu um overview do que eu queria realmente. Uma vez escutei uma coisa que é a pura verdade: quando você começa a dizer “não”, isso vai te ajudar a crescer de uma maneira que vai render um “sim” no futuro. Te faz ter um futuro que tem uma base.

E tem coisas que trazem tanto prazer quanto um palco…

É muito diferente da nossa época. Hoje tem muita coisa que pode ser exercida ao redor desse business. E você pode ter até aptidão para uma delas, só que não descobriu ainda. Quero me dedicar nos próximos anos a trazer uma visão para as novas gerações. Nem todo mundo vai conseguir ser o Vintage Culture ou o Mochakk. É legal tocar, produzir, isso sempre vai ser uma coisa foda. Mas do outro lado, tem outras coisas que podem ajudar a criar gente mais preparada para fazer tudo andar ao mesmo tempo.

O que você gostaria de passar para essa galera mais nova? Que erros que você cometeu que poderiam virar uma aula?

Cada um sabe das suas escolhas, mas talvez eu poderia ter dito muitos “não” se lá atrás tivesse a cabeça que tenho hoje. Quando você estipula o que quer fazer e o que não quer, fica mais fácil. Há 15, 20 anos, era correria, gig atrás de gig. A gente tocava em São Paulo, já corria pra Recife, pega voo, volta. Pessoalmente, acho que dei sorte também. Não sou um cara adicto em drogas e isso me ajudou demais. Não sei o que seria de mim tocando todo final de semana e ainda emendando com a loucurada.

Os sonhos e expectativas de quem está começando agora são os mesmos de quando nós começamos?

É uma resposta difícil. O que fez eu, você e a maioria da nossa geração a começar a trabalhar com música foi a paixão. Havia muita dificuldade. Comprar disco envolvia dinheiro pra caralho. Não se ganhava bem. Nunca foi o suficiente para cada um conseguir se bancar. O Brasil tem um problema de custos que é complicado. Era uma época muito difícil. Você tinha que gostar muito disso para escolher como o seu modo de vida. Talvez os motivos que trouxeram a gente não são mais os mesmos. E não tem problema nenhum nisso. São momentos diferentes. Não tem certo e nem errado.

Hoje em dia a galera mira nos caras lá do topo. Tá tudo perto. Na nossa época, mirávamos em uma estrutura mínima pra fazer nosso trabalho.

Leo Janeiro

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A gente tinha uma puta demanda, mas não tinha a visão de que isso era um negócio. Você acha que isso atrasou a cena brasileira?

Hoje não existe a diferença entre mainstream e underground. Tudo se misturou. Não tem mais aquela cena do EDM. Você tem vários artistas no topo que não fazem uma música considerada mainstream, mas conseguem grandes resultados. Um bom exemplo disso é o Keinemusik. Três caras que estão há muito tempo no business e estouraram agora, fazendo o rolê deles e descobrindo uma maneira de conseguir. Os caras vendem dez mil convites, mais que banda de rock’n’roll, quando vêm para o Brasil.

Mas sim, infelizmente o Brasil ficou um tempo estagnado. E, porra, nós tivemos uma época de DJs muito fodas. Hoje, inverteu a mão, até por uma questão comercial. Primeiro, você começa fazendo música, e depois aprende a tocar. E na questão do atraso, a gente tem que ver que no final dos anos 90, o país passava por muitas transformações. O Plano Real, a questão do dólar…

Ficou tudo momentaneamente mais barato ali…

Me lembro de ir a Nova Iorque com 498 dólares no bolso. Gastei tudo no primeiro dia na Satellite Records. Mas o dólar era um por um. Se fosse converter hoje…

Naquela época demos uns passos legais. Começaram a explodir os festivais no Brasil, muito DJ legal rodando. Era menos produção e mais DJing. Hoje estamos em outro momento, com outros heróis nacionais. O que é legal é que estamos menos dependentes dos gringos. Você consegue ver alguns labels nacionais fazendo um trabalho legal. Antigamente não tinha.

Você trabalhou com uma distribuidora alemã, e agora está em uma inglesa. O que viu de diferente na forma deles trabalharem?

Uma coisa legal é que eles estão sempre pensando em como fazer o negócio evoluir. Acho interessante, porque o conforto de qualquer negócio é quando você está bonito na fita. Tudo dando certo, entrando dinheiro e tal. Só que é nessa hora que você tem de ter o dobro de cuidado. Porque tem o next step. Outra coisa legal é que eles sempre olham para os mercados novos, caso do Brasil e América do Sul, com muito respeito. Querem saber, entender, porque cada lugar tem seu DNA.

E foi aí que você entrou…

Sim. Eu fico muito feliz porque eu consegui ajudar um pouco, e também aprendi pra caralho. Hoje eu consigo ver que, quanto mais você consegue se integrar àquela comunidade que você quer estar junto, melhor. E os gringos que trabalham com música são em geral muito abertos. Não tem aquela coisa de “tem de ser do meu jeito”, exceto por alguns cuidados com contratos e tals. No geral, são muito receptivos e têm a cabeça aberta para entender as peculiaridades de cada lugar.

E quais são as peculiaridades do Brasil?

Cara, é uma caixa de surpresa. Do nada vem um negócio que bomba. Como o fenômeno do funk dentro da música eletrônica, misturando tudo, que é legal pra caralho. O funk é a música eletrônica brasileira original, e agora está fazendo como o jazz, flertando com outras coisas.

Dentro da música eletrônica, o funk trouxe uma outra capacidade pra gente. Um movimento que nasceu aqui, e tem agora os seus heróis nacionais, que são também mundiais. Aquele Beltran, o que o moleque faz? Uma loucura. Sua música, Smack Yo’, é uma das mais virais do TikTok no mundo. Nesse aspecto, o Brasil é um pais muito surpreendente. Temos a criatividade a nosso favor.

Eu acho também que vamos ver outro momento, que é o resgate de artistas e DJs que já tiveram este contexto. Estou vendo isso crescer, um flow de público novo cavucando, sabendo que são os DJs lá de trás, no mundo e no Brasil. Acontece com recorrência comigo, de conversar com molecada que ouviu o som e me acompanha. O Marky, por exemplo, é um cara que já reciclou o público dele. Você vê o cara tocando drum’n’bass e a galera pulando. E não é a galera da minha idade, são pessoas mais novas. Esse resgate não é pensado, nem planejado, mas está acontecendo. É importante saber que, além dos artistas novos, tem uma turma anterior que ajudou para que a coisa seja como é hoje.

Cara, você criou e dirige o selo Cocada. Qual é a missão do selo?

A história do Cocada foi muito doida. A gente estava fazendo o BRMC e sentíamos que faltava conexão entre as coisas do Brasil. Já tinham labels maneiros. Como o Roland Leesker (Get Physical) estava vindo muito para o Brasil, eu falei para ele pensar em como fazer isso, conectar o Brasil com o mundo, trazendo a expertise dele. Num belo dia, ele me liga e fala “vamos criar um label, queria que você estivesse junto”.

A ideia inicial era ser uma compilação para conectar a galera. Fizemos algumas, e no final achamos importante dar prosseguimento a isso. A missão é apoiar artistas locais. O Cocada nunca lançou um artista internacional, exceto remixes. Nosso primeiro lançamento foi com Bruce Leroys, e com remix do Ricardo Villalobos! Depois daí, vieram uma série de coisas legais.

Uma sacada importante que a gente teve foi de criar um environment em torno do selo, uma história bem ajeitadinha. Quando deu certo, começamos a fazer a festa do Cocada. Agora, veio o merchandising que explodiu. Lançamos uma coleção no passado que esgotou em duas semanas.

É uma saída para um momento em que não existe mais o formato físico da música…

Exatamente. Lançou uma gravadora? Beleza, você tem a música. Agora precisa ter as pessoas conectadas a ela, e isso vem com uma festa. Depois, algo para as pessoas que são amarradonas apoiarem a festa. Com o merchandise, deu match total. Nosso próximo passo é um programa de rádio para a Apple Music. Lá, o DJ, o produtor que teve a música tocada e o label recebem com a audiência. Todo mundo ganha.

Sendo bem sincero, a gente está tentando explorar os diversos níveis de negócio que a parada tem. Não temos só a música, mas ela conectada com muita coisa. O negócio fica mais sustentável do que há cinco anos.

Leo Janeiro

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Que era um tempo de terra arrasada… Todo mundo falava que não tinha mais como ganhar dinheiro com música, além dos shows…

E tem uma outra coisa. Uma alimenta a outra. Agora vamos entrar com cartazes na loja, inspirados nas capas dos álbuns do Cocada, que são fodas, feitas pela Paula Iles. Um papel foda, perfeito para emoldurar.

Isso é uma coisa que o pessoal do rock sempre soube fazer.

Sim, O rock’n’roll me fez pensar nisso. Sempre usaram isso a seu favor.

O que levou o moleque Leo Janeiro para o mundo da discotecagem?

Na minha casa, se tinha algum aparelho “novo”, eram os de música. Tínhamos o famoso 3 em 1, minha mãe e avós sempre consumiam. Comecei a comprar discos e ouvir com uns 14, 15 anos.

Com uns 18, ouvindo as preocupações da minha mãe para ter aquele emprego que dá segurança e tal, entrei na escola de cadetes da aeronáutica. Só que ao mesmo tempo, eu precisava ganhar grana para sair, fazer as coisas e tal. Então um brother meu que sabia que eu já gostava muito de música me arrumou emprego numa equipe de som. Cara, eu era peão mesmo. Carregava caixas nas costas, pesadas pra caralho, ajudava a montar.

Quando o dono percebeu que eu tinha uma parada muito forte com música, me convidou para ir na casa dele ouvindo os discos da equipe, aprender a discotecagem e tudo o mais. Num belo dia, numa festa de 15 anos, o DJ oficial faltou e o cara falou: “você já tá aí, montou o som. Toma um banho, pega uma roupa e faz a festa. Já ganha mais uma grana”.

Um começo que resulta no Leo Janeiro de hoje. Como é olhar para tudo isso agora?

Um conselho que eu daria para a galera de hoje é ter resiliência, acreditar nas coisas que ama. Para mim deu certo. Uma coisa que a galera precisa entender hoje em dia é que, se você quer muito que a coisa aconteça, precisa brigar por isso todo dia, de uma maneira direta ou indireta. Trabalhando e fazendo acontecer. Porque não é fácil. Nem todo mundo vai ser um puta DJ, vai ter um monte de gigs e tal. Só que, se você procurar ao redor, também pode encontrar algo legal para fazer. Escolha um caminho em que você fique a vontade para fazer escolhas, e construa algo legal.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.