Conheça a história do músico que foi referência para os artistas que popularizaram a bossa nova
Johnny Alf, carioca que subverteu harmonia e letra, foi uma das maiores referências para os ícones do gênero musical cultuado no mundo todo.
Que tal ler esta matéria enquanto ouve uma playlist especial do Johnny Alf?
“Ah, se a juventude que essa brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só pra ser um sonho
E aí então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então pra nós seria…”
O influenciador da Bossa Nova
Este é um trecho de “Eu e a brisa” uma das canções mais lindas e conhecidas do nosso homenageado de hoje, o genial pianista Johnny Alf. Originalmente composta para o casamento de um amigo, a canção, recusada na igreja, foi engavetada e só viu a luz novamente, quando interpretada pela cantora Márcia no Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, em 1967. Mesmo desclassificada, pouco tempo depois se impôs tornando se uma das mais tocadas nas rádios da época.
Tido por muitos como um injustiçado, diante do tremendo sucesso que a Bossa Nova fez, mas (na opinião desta que vos escreve) Alf foi e é muito maior que isso e é também indevidamente reduzido a um mero influenciador do movimento, que não obteve reconhecimento.
A leitura de sua biografia, “Johnny Alf, duas ou três coisas que você não sabe”, escrita por João Carlos Rodrigues, veio para confirmar essa minha discordância, já no prefácio, as palavras de que o livro quer escapar do lugar comum de que Alf foi um “coitado”, passado pra trás, já despertaram meu profundo interesse.
Além disso, ninguém duvida do imenso talento dos nomes que vem à cabeça de quase todo mundo, quando o assunto é Bossa Nova. E eles merecem esse reconhecimento sim, porque eram mestres e o movimento mudou a música brasileira, foi influente e absolutamente respeitado aqui e no exterior.
Tudo começou quando os então amadores Roberto Menescal, Carlos Lyra, Silvinha Teles, ou um jovem Tom Jobim iam assistir Alf tocar? Sim e anos mais tarde Tom Jobim mostra “Desafinado” a Alf e diz que a canção foi inspirada em ”Rapaz de Bem”.
A música de harmonia não convencional para a época, inovação estrutural e até temática, trazendo assuntos do cotidiano para as letras, antecipou o “sol e mar” e a melodia linear típicos da poética Bossa Nova. O que foi feito disso depois… sabemos bem, mas a opinião de Alf era de que ninguém inventa nada, todo mundo tem uma fonte, e a partir dessa fonte riquíssima e maravilhosa, os acordes do violão de João Gilberto, as batidas de Dom Um Romão, as letras de Vinícius de Moraes, tomaram outro rumo, que para mim, não é o mesmo de Alf.
Johnny Alf, do jeito que ele merece
Logo, vamos falar desse gigante do jeito que ele merece. Nascido em uma, então bucólica, Vila Isabel, Rio de Janeiro, em 19 de maio do ano de 1929, Alfredo José da Silva veio ao mundo artista, filho da lavadeira Inês Marina da Conceição, uma mãe amorosa que entregou a educação do filho nas mãos de uma das famílias onde trabalhava.
Eu sou mãe e sei o que Inês pensou e queria para o filho, uma vida melhor que a sua, oportunidades, que pudesse conhecer o mundo através dos livros e do estudo. Na família de criação, todos eram músicos amadores. As festas e saraus organizados por eles, aguçaram a musicalidade de Alf desde muito pequeno e aos 6 começou a estudar piano com Geni Borges, uma amiga da família, aos nove ele já dava aula.
Os hobbies de Alf eram o cinema e a música, apreciava a solidão e costumava ficar até 10 horas dentro de uma sala. Se transportava para dentro dos filmes e da música dos mesmos, numa viagem de autoconhecimento e estudo. Algumas tardes e noites em que a família saía para passear, ele preferia se trancar em casa e tocar esquecendo do tempo . Debussy e Chopin, eram seus prediletos. Foi em uma dessas infindas horas passadas no cinema, que ouviu pela primeira vez o som de Nat King Cole e seu trio instrumental, em um dos musicais da Metro, famosos na época, foi paixão à primeira nota.
Tinha coleções enormes. César Camargo Mariano conta que quando tinha 11 anos de idade, Alf foi morar na casa de seus pais e lá ficou por 9 anos. Sua chegada foi acompanhada de 2 táxis, um deles lotado de livros e discos e que esse amor de Alf o influenciou muito, desde a postura diante da arte, até a percepção de cores e de como ouvir e sentir a música.
Começou a ser chamado de Alf por um professor do Instituto Brasil-Estados Unidos, onde tocava e frequentava aulas antes de se tornar profissional. O nome artístico como conhecemos hoje surgiu em um programa de jazz, apresentado por Paulo Santos, na Rádio Ministério da Educação, sob a pergunta do apresentador “É Alf de que?” e a resposta de uma aluna norte americana: “coloca Johnny, é um nome popular na minha terra.”
Johnny Alf idealizava ser pianista, trabalhar com música e viver disso, mas a família que o criou era contra e o colocaram para trabalhar em um escritório de contabilidade, ocupação que durou aproximadamente um ano e terminou com sua entrada no exército. A independência adquirida no quartel, o levou à decisão de morar sozinho e finalmente realizar o que queria, arranjar o sonhado emprego de pianista.
Essa passagem da vida do artista, rendeu a composição da já citada aqui neste texto, Rapaz de Bem, escrita para a família que não aceitava suas escolhas, esta beleza foi regravada por vários artistas como Carlos Lyra, Leila Pinheiro, Nara Leão e também pelo compositor e pianista argentino Lalo Schifrin, uma versão instrumental bem linda, recomendo, você a encontrará no disco “Bossa Nova: New Brazilian Jazz”, de 1962
“Eu tenho casa
Tenho comida
Não passo fome, graças a Deus
E no esporte eu sou de morte
Tendo isto tudo eu não preciso de mais nada, é claro!”
De fã de Sinatra a ícone do jazz
Pouco tempo depois do período passado no exército, surge, na Tijuca, o Sinatra-Farney Fã Clube, fundado pelas primas Didi, Joca e Tereza Queiroz. Os discos trazidos do exterior pelo radialista Luís Serrano e por Dick Farney rodavam nas vitrolas, onde vários jovens se reuniam no porão da casa de uma das sócias para ouvir jazz, tocar, estudar, discutir, respirar e pensar música.
Entre os frequentadores estavam também Cyl Farney, o saxofonista Paulo Moura, João Donato, Nora Ney, Raul Mascarenhas, entre outros. Para entrar, era necessário passar por um teste, todos os membros tinham que ter algum talento artístico e Alf já era destaque no piano, tocava por horas e não o deixavam sair, sua música já era diferente, em uma nova linguagem musical que surgia, mesclando seu imenso conhecimento do erudito, com o jazz e o samba, o improviso e as harmonias complexas.
As boas oportunidades começaram a aparecer, primeiro a Cantina do César, em 1952, em seguida a boate Monte Carlo, onde integrava a banda do violonista Fafá Lemos, as boates Mandarim, Drink e Plaza, Clube da Chave e Bottle’s Bar vieram na sequência, entre os espectadores, era comum ver nomes como Tom Jobim, João Gilberto, Dolores Duran, Ary Barroso, todo mundo queria ouvir e sentir Alf tocar, eu só imagino daqui a sensação, devia ser surreal.
Os discos é claro, foram acontecendo, o primeiro gravado na Sinter, continha duas músicas instrumentais “De cigarro em cigarro”, autoria de Luiz Bonfá e a composição própria “Falsete”. Em 1961, lança pela RCA o primeiro LP “Rapaz de Bem”, um banho de suingue, gosto também particularmente da faixa “Fuga”, iniciada com Alf e o trombone em uníssono, é o mais puro samba jazz, contagiante.
No mesmo ano, recebeu o convite de Chico Feitosa para participar do famoso show de Bossa Nova no Carnegie Hall. Ruy Castro, narra no livro “Chega de Saudade”, que após o convite, Alf desaparece do Top Club, onde estava tocando, acho isso a cara do introspectivo artista que ele foi, em contraponto a todo o mainstream que a Bossa Nova representava.
Injustiçado?
Nos anos seguintes foram lançados “Diagonal” (1964), dos meus prediletos, uma das músicas desse disco surgiu em uma reunião do Sinatra-Farney, enquanto ouviam Chopin, alguém comenta “isso dá um samba”, Alf senta ao piano e começa dedilhar e depois de um tempo nasce “Seu Chopin, desculpe”, com todo aquele talento de quem faz algo com tanta maestria, que fica até parecendo fácil. Acho que essa é uma boa definição do que é ser genial, ou “Genialf”, como Jobim costumava chamá-lo. “Céu e Mar” também é uma das faixas deste disco, o álbum todo tem o pensamento melódico, afinado com o jazz, com acordes dissonantes e harmonias cheias de tensão, muito arrojados para a época. Depois vieram “Johnny Alf” (1966); “Ele é Johnny Alf” (1971); Nós (1974) e por aí vai… são vários discos maravilhosos, além de participações em coletâneas.
O artista não considerava ter participado da Bossa Nova. Morou em São Paulo uma época, onde era cultuado e considerado a total vanguarda, os então jovens Jorge Mautner e Roberto Aguilar estavam entre seus inúmeros admiradores. Foi uma lenda no meio musical do Rio, e eu espero humildemente que estes meus escritos o tirem do lugar de injustiçado.
É claro que gostaríamos que fosse mais homenageado, mas não por ser somente um precursor da Bossa Nova, mas sim por ser simplesmente Johnny Alf, aquele que ensinou aos músicos o caminho da mistura do jazz com o samba, sempre fiel à suas fontes, nas palavras de Zuza Homem de Mello
“foi um verdadeiro desbravador na modernidade da música brasileira, o ídolo dos Bossa-Nova, mais que um precursor. Foi o inspirador que deu aos jovens que frequentavam o bar do Plaza a certeza de que o sonho imaginado poderia ser encontrado, pois sua estética musical – compondo, tocando e cantando – caía como uma luva para suas ansiedades… O mais modesto de todos os vanguardistas na música brasileira, Johnny Alf é também fiel a seus princípios artísticos”.
Johnny Alf foi um sonhador, um poeta tímido, em um meio cuja maior força é a vaidade, ele viveu sua verdade, este pequeno texto tenta retratar, nestas sucintas palavras a grandiosidade de alguém que não esperava nada em troca, a não ser se sentir realizado e satisfeito consigo mesmo.
Cultuemos Johnny Alf, ouvindo Johnny Alf.