DJ Meme DJ Meme. Foto: Alisson Demetrio/Divulgação

Set entre Meme e David Morales deve rolar no C6 Fest: “É como sexo. Acontece”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Lenda viva da discotecagem brasileira, DJ Meme conta por que não topa festivais como Lolla e garante: “eu não toco para o público”

Ao lado de outra lenda da house music, David Morales, o carioca DJ Meme (leia-se Memê) vai comandar a pista por uma noite inteira no C6 Fest 2024. Amigos através da música, a dupla pretende entregar ao público horas e horas da mais pura e clássica house — algo que, bem executado, torna uma noite inesquecível.

Credenciais para isso, Meme tem de sobra. Criado transitando entre as discotecas e os bailes do subúrbio carioca nos anos 80, aos 15 anos o rapaz já comandava as pistas, durante toda uma noite, em casas históricas como a Papagaio, que teve filiais no Rio e em São Paulo.

E aqui, uma alerta de spoiler: nem ele e nem Morales prometem nem confirmam, mas irão sim, fatalmente, tocar um pouco juntos na pista do C6 2024. E tudo indica que será uma noite histórica.

Conversei com Meme sobre música, história, tecnologia e a cultura DJ em um delicioso papo que faz, usando a gíria dos DJs, o warm-up para a grande noite.

Jota Wagner: A sua história e a do David Morales, com quem você divide o festival, são muito parecidas. A coisa de começar na house e fazer muito sucesso com remixes…

DJ Meme: Eu pensei isso ontem, pela primeira vez. Fiquei imaginando o que você ia me perguntar. Naquele momento, isso caiu na minha cabeça.

Como é seu relacionamento com ele? Já tocaram juntos ou algo assim?

Jota, eu fui o único artista brasileiro e um dos poucos do mundo a fazer parte da Def Mix. Não sei se isso está no currículo do David, mas a Def Mix foi uma agência que ele montou em 1987 junto com a ex-empresária. Ali, ele se juntou a Frankie Knuckles, Satoshi Tomie e mais um, italiano, cujo nome eu não me lembro agora. Essa agência só teve sete DJs. Em 2011, o próprio Knucles me chamou para fazer parte. Eu rodava o mundo com eles, para tocar por aí.

Quando o Frankie morreu, a coisa começou a se dissipar. Eu fui para um lado, David pro outro, e hoje a Def Mix não existe mais. Era uma agência de DJs que também fazia remixes. Até hoje as pessoas se referem a ela como a realeza da house music. Não por minha causa, que entrei depois, mas obviamente por causa do David e do Frankie, que estavam fazendo todos os remixes bacanas, na década de 90. Respondendo à sua pergunta, meu contato com o David existiu a partir desse momento.

No C6 Fest 2024, você vai tocar para uma garotada, e você começou na aurora da house music…

Olha, eu acho que não vai ser só molecada não. Porque só tem a gente no line-up, eu e David. O C6 está fazendo com que muita gente mais velha se movimente.

Bom, garotada, para nós dois, é o povo de 30, 40 anos…

Pois é! (Risos)

A função da dance music continua a mesma? A coisa inclusiva, da diversidade…

Eu não acho que havia essa função explicitamente. Em algum momento, essa bandeira foi levantada porque a house veio do mundo negro, latino e gay. Naturalmente, ela sempre foi atraindo pessoas que simpatizavam com isso.

Eu acho que a função da música de pista é a mesma de você ir para um restaurante. É diversão. Quem está precisando, vai. Quem não necessariamente está precisando e quer, vai também.

O Rio de Janeiro, onde você começou nos anos 80, sempre teve esse circuito entre subúrbio e Zona Sul. Como era essa cena?

Eu comecei a me movimentar na virada para os anos 80. Em 77, eu tinha 13 anos de idade e a disco estava explodindo. Aquela foi a direção que eu tomei. A música era o meu videogame. Eu descobri a pista de dança, e então saía de casa o tempo inteiro — para comprar discos, para encontrar os amigos na lojas, para formar minha própria turma. Por ainda não ter 18 anos, nós ainda não podíamos entrar nos bailes. Mas aquilo, para mim, era minha razão de ascender. É a época em que você começa a fazer escolhas pessoais, porque eu escolhi a música. Eu sou feito de música.

É engraçado você falar essa coisa de Zona Norte e Zona Sul. Eu chegava da escola, almoçava e ia para uma loja de discos, que era o nosso “bar”, onde já havia outros garotos da minha idade, encostados nas bancas, e ficávamos de papo a tarde inteira, até a loja fechar. A gente formava nossa turma ali. Foi nas lojas que eu encontrei a galera da ZN. Eu sou um “garoto Zona Sul”, e fui o único DJ que disse: “eu quero ir lá ver”.

Nessa onda de trocar discos, um amigo falou “conheço um cara maneiro, que tem muito disco legal. Quer ir na casa dele?”. Foi assim que eu atravessei o túnel. Comecei a frequentar e os caras me adotaram. Começaram a me levar para bailes, e então construí uma ponte que ninguém, nem da minha idade e nem outros DJs, fazia.

E o que você viu quando chegou nos bailes da ZN?

Minha cabeça explodiu, cara. Aos 15 anos, eu já estava tocando no clube mais quente do Rio de Janeiro, o Papagaio, que também teve uma filial em São Paulo. Um clube do paulista Ricardo Amaral, um paulista que morava no Rio. Eu frequentava a casa e acabei tocando. Então, você sabe como era uma boate, com aqueles mauricinhos todos (hoje Faria Limers, né?), dançando ali, aquela casa cheia…

Quando fui para o baile… era um versão totalmente diferente. Gente com a mesma fome de dançar. Sábado, domingo, vivendo aquilo como se fosse uma válvula de escape. E era muito mais intenso, Jota. As pessoas diferentes, os encontros… Ali, tinha música lenta em determinado momento do baile. Tinha uma cultura. Os caras realmente me adotaram e fizeram me sentir um deles.

Tudo então era muito vivo. Se eu não estava na Zona Norte, estava na Sul. Os caras me paravam e diziam: “aí, bixo, vai ter baile no Vasquinho do Morro Agudo”. Eu já tinha ouvido falar no programa de rádio, uma coisa subversiva. Aí entrava num fusca em que o limpador de para-brisa não funcionava. Quando chovia, o cara botava o braço para fora e limpava com a mão. Era uma coisa surreal. Você sabia que aquilo podia dar merda, mas era muito estimulante.

DJ Meme

DJ Meme em edição da celebrada Glitterbox. Foto: Divulgação

Tinha uma função incrível das rádios na época. O que você acha que as pessoas estão perdendo agora, que elas não têm mais força?

Estamos perdendo uma curadoria que venha até a gente. Hoje, é preciso procurar. Tem mais informação e facilidade do que antes. Só que as pessoas estão sendo acostumadas a esperar que venham a elas. Mas já está tudo aí. Ano passado, por exemplo, lancei uma caixa de discos com remixes e tal. Postei a foto da caixa e escrevi: “compre na loja Universal!”. O primeiro comentário foi: “onde eu compro”?

Clássico…

As pessoas estão acostumadas com tudo na mão. Antigamente, o cara trazia a informação para você no rádio. Hoje, seria preciso procurar em arquivos. Você tinha de levantar da cadeira e ir atrás, na loja de disco. Tocava uma nova música, que todo mundo ouviu ao mesmo tempo, na rádio, e se informava, falava sobre isso. Na verdade, a coisa fez um shift. Hoje tem mais e as pessoas procuram menos. Antigamente, tinha menos e nós nos movimentávamos mais. E a rádio tinha um curador que dizia: “isso aqui é bom”. Hoje as pessoas, por tanta facilidade, têm preguiça.

Você tem mergulhado nessas novas e loucas tecnologias de produção? Essas ferramentas que extraem um instrumento de uma música pronta, por exemplo…

Cara, elas estão na minha vida desde sempre. Elas são novas “para os novatos”. Eu acompanhei a evolução disso.

Sim, mas para você, que picava música na unha, ver coisas acontecendo que são de outro mundo… A mim, essas ferramentas parecem mágica…

Eu vou te contar uma coisa, Jota. Na Billboard, que era uma espécie de bíblia pra gente — afinal, a gente comprava revistas importadas para ver o que tinha saído de novo —, tinha um anúncio muito interessante. Eu tinha uns 14 anos e esse anúncio já existia. Era um tijolinho, escondido na revista, com um DJ e o texto: “tire a voz da música para você fazer karaokê”. Eu e meus amigos ríamos: “gente, isso é impossível, nunca vai acontecer”. Sempre que aparecem novas tecnologias, esse anúncio vem à minha cabeça.

Existe uma discussão muito forte entre os artistas sobre Inteligência Artificial. Como serão pagos os direitos, os créditos… Como você participa disso?

Eu estou nisso há mais tempo que qualquer pessoa, no Brasil. Os que começaram junto comigo já não estão mais botando a mão em produção musical. Iraí Campos, que começou na mesma época que eu, não faz mais isso, e o Gregão faleceu. Nós três éramos a linha de frente da produção de remix no Brasil — falando, claro, como DJs produtores.

Eu nunca parei. Fui sempre comprando tecnologia nova. Então, eu compreendo esses ciclos. Eu não tenho medo deles. O que eu tenho é uma curiosidade muito grande em saber como vai servir para mim. Eu utilizo tudo porque eu gosto. Vou batendo bola.

O David Morales me ligou, semana passada, para mostrar a mesa de som nova que ele tinha comprado, o que ela fazia. Quando fui até a casa dele, no ano passado, mostrei a ele coisas novas, que ele não conhecia. Esta troca, para mim, é constante. Só muda o sujeito. Portanto, eu sei que tem coisa pra mim aí e também tem coisa que eu não quero.

As suas ideias, elas vão sendo expandidas. Da mesma forma que eu vi o tijolinho na Billboard e pensei “isso nunca vai acontecer”, agora minhas ideias não param mais.

Tem vezes que eu, prestes a dormir, levanto da cama pensando: “deixa eu ver se consigo fazer isso com inteligência artificial”. Vou lá, executo, vejo que é possível e volto a dormir. Se não fosse assim, não estava aqui até hoje.

Você produz para discotecar mais ou discoteca para poder produzir? Quem é maior, o DJ ou o produtor?

O DJ, sem dúvida nenhuma. Eu sou um DJ que produz, e não um produtor que foi tocar. Porque a música me toca, eu vou para todas as partes dela. Faço curadoria, playlist, faço música, remixes, toco na pista… Onde eu puder atacar, aonde minhas habilidades chegarem, eu estou lá.

É muito difícil as pessoas entenderem. Até hoje eu pago por isso: “você faz música pop, então você toca música pop”. Não, cara. O DJ Meme não tem nada a ver com o cara que produziu Lulu Santos. Eu cansei de explicar essa confusão. Eu sou da música.

Acabou o C6 Fest 2024, você voltou para o hotel e botou a cabeça no travesseiro. O que precisa ter acontecido ali para você pensar: “que noite perfeita”?

A primeira imagem que me veio à cabeça ouvindo esta pergunta foi a da felicidade no rosto das pessoas. Quando eu vejo que isso está acontecendo, e que não tem problema nenhum em volta, quando eu vejo que eu estou gostando do meu set…

Porque eu digo, Jota (e posso até ser rechaçado por isso), eu toco pra mim. Eu não toco para o público. Nunca toquei. Se está me agradando e eu vejo que o público está refletindo isso, então eu entro naquele canal e não saio mais. Eu sei que é algo meio egoísta, mas é a fórmula que funcionou para mim.

Quando, no dia seguinte, eu vejo que as pessoas estão comentando muito e isso reflete aquilo que eu vi, então penso: “good job”. Trabalho feito.

Tudo mundo está querendo saber, claro, se vocês vão tocar juntos…

É muito natural a gente tocar junto. É como ir na casa de um amigo que está com um brinquedo, um trenzinho novo. Ele começa ali te mostrando e logo vocês dois estão brincando juntos. Mesmo que não seja programado.

Você começou a entrevista dizendo que a gente tem muita semelhança. E tem mesmo. Quanto mais eu conheço o David, mais eu tenho certeza que nós ouvíamos os mesmos discos quando éramos jovens. Isso é cada vez mais claro. Nossas ideias são muito parecidas e convergem sempre pro mesmo lugar.

Na última vez que fui para a Itália, no ano passado, ele me convidou para ir à casa dele, fazer a live Sunday Mass com ele. Quando vi, estávamos os dois tocando juntos, um back to back natural. Dois garotos e um trenzinho. Uma brincadeira nossa, que o público adora ver. Não estou prometendo…

Mas também não vai negar!

A gente já falou sobre isso. Eu falei: “cara você vai gostar tanto que vai querer estender seu set”. Se quiser, toca um pouco mais. Ele respondeu: “não, vamos tocar juntos!”. Tem uma coisa implícita aí, natural. Eu não aceito fazer back to back pago. Já recusei três, ultimamente.

Por quê?

Porque é uma coisa natural. Isso é igual a sexo. Ele acontece. Não quer dizer que vai acontecer entre eu e o David, mas é preciso acontecer. O momento em que o foguete entra na atmosfera. Se passar um pouco do ponto, pega fogo e não rola. Se não rolar uma música que eu gostar e pedir “posso fazer a próxima?”, aí não vai ter.

Porque eu não aceito ser contratado para fazer back to back, é muito raro. E eu também gosto de tocar o meu set, de contar a minha história. Não vou entrar na modinha. Eu e o David Morales tocávamos quando não existia line-up. Isso foi inventado pelos festivais e pelas raves, porque você tinha horas e horas de música e, para atrair as pessoas, você coloca quatro, cinco, ou mais DJs. Isso foi virando uma moda que caiu nos clubes também. Agora, tudo tem line-up.

Nós viemos de um momento em que a casa abria às 10 da noite e você apertava play. No máximo, tinha um segundo DJ, que rendia o outro para descansar, ir ao banheiro, etc. Com esse negócio de line-up, começaram a reduzir os sets para duas horas.

Em duas horas você não conta uma história. Isso não é ser DJ. Ter de entrar no meio,  já bombando, e daqui a pouco ter de passar para outra pessoa. E provavelmente o set anterior vai foder o seu, porque a curadoria dessas festas é errada o tempo inteiro.

O cara quer o nome da pessoa ali. Pra gente contar a história, é preciso mais tempo. Eu só consigo contar a minha em um set longo. Isso tem de voltar, de algum jeito. Hoje se diz que fulano vai fazer long set, e são três horas! Isso não é long set! A gente toca do começo ao fim da festa.

O próprio Sunday Mass, do Morales, é uma live que ele faz em casa e dura seis horas…

Exatamente. O David me falou lá: “você e o Hector Romero foram os dois únicos DJs que eu deixei interromper meu set. Vocês somaram”. Porque ele faz isso e se diverte pra caralho.

Agora, tão reduzindo para uma hora e meia! Amigas minhas no Lollapalooza tocaram por 30 minutos! Eu não faço. Tomorrowland, Lolla, não faço. Se quer só meu nome, bota lá, me paga e eu fico em casa. Porque quando você faz isso, o público não nota. O cara não quer a música, ele quer o nome. Este é o problema em se criar uma cena focada em nomes: você deixa a música de lado. E quando você deixa a música de lado, não é mais uma cultura de DJs.

C6 Fest

O C6 Fest é “filho” de dois dos mais renomados festivais brasileiros das últimas décadas, o Free Jazz Festival e o Tim Festival. Considerando toda sua história, que remonta aos anos 90, seus curadores já foram responsáveis pela vinda de artistas como KraftwerkBjörk, Massive Attack, Sonic Youth e Arlo Parks, entre outros.

Programada para rolar entre os dias 17 e 19 de maio, a edição 2024 acontecerá novamente no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e tem dois tipos de ingressos: um valendo para as atrações da Arena Heineken & Tenda MetLife e outro para assistir a todas as atrações do Auditório Ibirapuera. É preciso comprar um por cada data pretendida.

Confira a programação completa do C6 Fest 2024

Serviço

C6 Fest 2024

Datas: 17, 18 e 19 de maio
Locais: Auditório do Parque Ibirapuera e Arena Heineken & Tenda Metlife (Av. Pedro Álvares Cabral, 0 – Ibirapuera, São Paulo/SP)
Ingressos: Via INTI

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.