Doctor Reggae Foto: Marcio Vasconcelos/Divulgação

No Dia Nacional do Reggae, conversamos com a maior autoridade brasileira no assunto

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Conhecido como Doctor Reggae, Otávio Rodrigues conta como se deu o casamento do reggae com a música brasileira

Ninguém melhor do que o jornalista e escritor, DJ e produtor, Otávio Rodrigues para nos contar a história do reggae no Brasil. Muito mais conhecido como Doctor Reggae, o cara fez o primeiro programa do gênero no rádio brasileiro, Roots Rock Reggae (Excelsior FM, 1982), plataforma para a criação do Projeto Jamaica-Brasil, que em 1983, com apoio do governo jamaicano e do African-Caribbean Institute, iniciou uma série de jornadas à ilha caribenha, fomentando o intercâmbio cultural entre os dois países desde então.

Foi redator da revista Somtrês, na qual manteve a coluna Negra Melodia, pioneira na divulgação da música do Terceiro Mundo. Dirigiu as redações das revistas Trip e Bizz, assinou incontáveis reportagens e artigos para Folha de S. Paulo, Planeta, Caminhos da TerraFluir, Superinteressante, além de textos em publicações internacionais, como Reggae Report e The Beat, sendo grande parte desse trabalho dedicado à cultura e a música da Jamaica e do Brasil.

No Dia Nacional do Reggae, trazer uma entrevista com o Doctor Reggae de lá do Maranhão, onde atualmente vive, é um presente para nossos leitores.

Sem economia nas palavras, o homem nos conta sobre como conheceu o estilo, a história dos soundsystem e, principalmente, o casamento do reggae com a música brasileira.

Jota Wagner: Otávio, como é que nasceu pra você o envolvimento com o reggae?

Doctor Reggae: Foi em meados dos anos 70, 76 pra 77. Eu ouvi no carro, meu irmão já dirigia, e fiquei louco com aquele som. Uma coisa meio black, afro… Me lembrava algo do funk americano. Eu já era batuqueiro. A gente tinha uma iniciação musical no colégio estadual do Campo Belo. Fizeram uma escola de samba. Então, tive uma iniciação foda na batucada. Mais tarde, troquei a música pelo skate. Mas o reggae… aquela marcação, aquela síncope, mexeu completamente comigo.

Eu tinha uma formação de rock. Deep Purple, Led Zeppelin, rock progressivo. As minhas referências tinham, fundamentalmente, o virtuosismo. E o reggae não era nada disso. Você começa a ficar louco com uma bateria e um baixo que parecem simples. No fundo, não é nada simples fazer aquilo. Um conjunto de coisas que me assombraram.

E foi assim com todo mundo que foi atingido por Bob Marley nessa época. O álbum Legend, que foi a porta de entrada para muita gente no universo de Marley era, na verdade, uma coletânea de sucessos dele.

Mas nos anos 70, era bastante exótico para os ouvidos da maioria, mesmo tendo, na música brasileira e nordestina, uma pegada que lembra a do reggae. As influências formativas foram as mesmas: o calypso, a rumba, mambo, música latina… Tudo isso influência tanto a formação do reggae como a música do Brasil, das radiolas de São Luís e das aparelhagens do Pará. São fenômenos caribenhos.

Dá pra marcar um ponto de início do reggae brasileiro?

É difícil, porque é uma coisa gradativa. Tem alguns acontecimentos, mas desconectados. Por exemplo, em 1968, o Jimmy Cliff veio ao Brasil e gravou um disco aqui. O reggae nem existia ainda. Estava em formação. O termo já era usado, mas a música, mesmo, foi de 69 para 70. E o cara veio aqui participar de um Festival Internacional da Canção, ficou uns três meses e gravou um disco, inclusive onde canta em português.

O disco foi produzido pelo Nonato Buzar, um grande diretor musical da TV Globo e grande músico também. E, veja a coincidência, maranhense. Ele foi o fundador do movimento da pilantragem, que o Simonal transmitiu bastante bem. Buzar era um gênio. Então, esse disco do Jimmy Cliff em 68 tem a ver com a história do reggae no Brasil, mas não é aquilo que detona alguma coisa.

Tivemos aquela paixão do Gilberto Gil no exílio, quando ele andou com os jamaicanos…

Sim, mas foi um pouco depois, 70 ou 71, época em que o Johnny Nash fez muito sucesso com I Can See Clearly, que é um “reguinho”, meio estilizado e americanizado. Mas é fundamentalmente um reggae. Vem de um disco seminal, com várias canções de reggae, importante para o desenvolvimento do estilo, inclusive aqui, no Maranhão.

Então, são coisinhas que vão pintando. Eu mesmo sou um pouco parte dessa história, porque fiz o primeiro programa de reggae no rádio brasileiro, em 1982. Neste meio tempo, eu fui colecionando informação em um período em que era muito raro. Eu, como era muito esfomeado por jornal e revista, ia até o aeroporto de Congonhas e comprava o que tinha de revistas importadas. Eu era office boy quando moleque também. Andava muito pelo centro, ia rastreando sebos de discos e revistas.

Gilberto Gil ajudou quando lançou Não Chore Mais, por volta de 78. Uma canção que não é propriamente um reggae, mas foi um cartão de visitas. “Olha, isso aqui é Bob Marley.”

O Norte e o Nordeste são mais conectados, musical e socialmente, com o reggae?

É uma mistura. Vai depender de que Nordeste estamos falando.

A cena daqui de São Luís é muito diferente da de Fortaleza, Salvador, Belém… Mas acho, sim, que existe uma tendência natural por esse gosto. No caso maranhense, é uma coisa muito estética. Não é pela mensagem do reggae, pelo significado, apesar de alguma coisa sempre impregnar os bordões e etc. Isso para eles não tem um fundamento. Agora, para dançar, todo mundo conhece tudo. Não necessariamente o nome do artista ou da música. Muitas vezes eles conhecem a “melô”. Há colecionadores, pesquisadores e DJs nas rádios, mas não é o geral. Em geral, as pessoas querem o som, o ritmo.

Já na Bahia e em Salvador sempre teve o lado mais afro, mais ligado à negritude. Isso aconteceu também em São Paulo, quando o reggae começou a invadir os bailes black da Zimbabwe, Chic Show… E em São Paulo eu também sou, novamente, um pouco da história, com meu programa na Band dedicado ao reggae. A Band FM era uma rádio essencialmente black. Eu encaixei um programa semanal lá, que depois mudou para quintas e domingos, e chegou a ser diário, das 17h às 18h. Pensando agora sobre isso, eu nem acredito. Era rádio que sempre estava em primeiro ou segundo lugar na audiência. Um horário supernobre!

Eu tocava de tudo no programa, porque eu falava com o Brasil todo. Conheci o Maranhão em 88, fiquei de cara. Eu tinha uma percepção sudestina, de um branquelo de São Paulo, sobre o reggae. Aqui, tínhamos muita influência do surf. Trabalhei em revistas ligadas ao esporte, como a Trip, no comecinho. A surfistada trazia fitas da Indonésia, discos, as coisas sempre chegavam a mim. Pato Banton, conheci ali. Depois ele veio ao Brasil e lotou o Palace.

O que conhecíamos aqui era, então, um outro reggae. Quando cheguei em São Luís, conheci o Jurassic Park da cidade. Contei a história para todos, a chamei de Jamaica Brasileira — termo que pegou. Eu achava que era um entendidão, mas aí comecei a ouvir uma porrada de artistas que eu nunca tinha ouvido falar. Quem? Jimmy London?

Em São Paulo a gente ficava no espectro de Bob Marley, Peter Tosh, Jimmy Cliff, Dennis Brown, Yellow Man, Black Uhuru… Artistas que a gente chamava de primeira linha. Faziam muito sucesso, estavam no mercado, nas grandes gravadoras internacionais. E, cara, o universo do reggae é imenso! O que tem de artista talentoso… Até hoje descubro pessoas e penso: “não é possível”… Como aquela ilha produz música?

A cada década, a Jamaica reinventa sua música popular. Se eu for para lá agora, nem imagino como está aquilo. Não tenho dúvida que, se Bob Marley estivesse vivo e ativo, teria continuado a se transformar. Estaria fazendo um som moderno, assim como seus filhos e netos.

Dá para comparar esse movimento de radiolas do Maranhão com os soundsystems jamaicanos?

Tem muita similaridade e também muita diferença. Embora haja uma relação entre eles, o Maranhão não copiou a Jamaica. O movimento de soundsystem de São Paulo, por exemplo, copiou. Fazem algo igualzinho, inclusive seguindo a liturgia ao pé da letra. Meio tropicalizado, mas liturgico. Alguns soundsystems de SP mantêm aquela coisa de ter um toca-discos só, de ter um “coração” cheio de pre-amps…

A radiola, inclusive, vem antes do reggae existir na Jamaica. É algo que merece um estudo específico a respeito. Acho que as aparelhagens do Pará também são semeadoras deste movimento. Eu acho que foi um fenômeno mundial.

Como começou na Jamaica?

Foi ideia de um cara chamado Hadley Jones, um puta inventor. Tinha um talento fenomenal para essas coisas de elétrica, eletrônica… Durante a Segunda Guerra, ele foi trabalhar como operador de rádio para o Império Britânico. Ali, ampliou muito seus conhecimentos sobre tecnologia.

Quando voltou para Jamaica, com muito mais conhecimento do que a maioria, montou uma lojinha de discos. A Jamaica não produzia discos, era tudo importado. Então, para divulgá-los, ele pensou em montar um amplificador para poder chamar mais atenção do público, virando uma caixa de som para a rua.

Além do amplificador que ele montou ser muito mais potente, ele havia construído também caixas de som com alto-falantes grandes, os maiores que conseguiu importando de Londres. Ele achava que discos tão bons quanto os que ele trazia mereciam ser reproduzidos com sons de orquestra.

E aí, cara, foi um sucesso que me chamava a atenção. Passou por ali um cara, Tom The Great Sebastian era seu nome artísitico. Ele fazia festinhas com uma radiolinha. Quando viu aquilo, encomendou um soundsystem igual para Jones. Depois veio a segunda, a terceira encomenda… Todos faziam festinha na rua, de aniversário, era uma coisa humilde e simples, não era um mercado propriamente. Um casamento aqui, outro ali, entendeu? Era um babadinho que chamava a atenção.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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