Convidamos o Nego Moçambique, que foi pro Canadá, pra falar sobre a cultura do macho, saudade do rango brasileiro e projetos pro futuro

Claudia Assef
Por Claudia Assef

O ano era 2004. O funk carioca vivia pela primeira desde seus primórdios nos anos 80 um momento de glória na gringa. DJ Marlboro, até então conhecido pelos paulistanos pela participação que fazia no programa da Xuxa, entrou no radar dos descolados e começou a tocar em um monte de festas legais na cidade, fato que culminou com uma residência dele no Lov.e Club. Com as noite Pancadão, as quarta-feiras nunca mais foram as mesmas, e o funk carioca (e como consequência outros sons quebrados) quebrou a rigidez das tradicionais noites de música eletrônica geradas a ritmos importados.

Outro personagem importantíssimo desse cena é o brasiliense Marcelo Martins. Ok, talvez você não o conheça com esse nome. Nego Moçambique. Sim, o músico e produtor que ganhou pistas Brasil e mundo afora com hits como Gil Para BBoys, nos idos de 2003. Dá um play aí pra lembrar.

Gil Para B-Boys – Nego Moçambique

Com a abertura ao funk carioca nas pistas de dança, a música de Nego Moçambique veio como um hálito fresco de chá de menta para um cena então regada a faixas robóticas de minimal techno alemão, tão gelada quanto um Halls preto.

E não foi só a música dele que chegou causando. A figura do Marcelão trouxe sol, latinidade, calor. Ver uma apresentação do Nego Moçambique ao vivo era como presenciar a personificação da alma dançante de James Brown com a elasticidade do Michael Jordan e o visual de um b-boy do Bronx em 1982, tudo numa pessoa só. Fazendo um live PA com equipamentos de baixo custo, cantando e dançando com um sorrisão no rosto, não demorou pra fama do Nego chegar até a gringa, e lá foi ele tocar no Sónar Barcelona (na mesma noite do DJ Marlboro), Mutek (Montreal), Favela Chic em Paris e outras paragens no hemisfério norte.

Isso sem falar no hit zoeira das pistas A Resposta do Marcelo (Melô do Isqueirão), assinado em parceria com Dudu Marote sob o aka Bonde Fumegante. Uma faixa de house impossível de não dançar e com uma letra totalmente cafajeste e divertida em português.

Lá se vão 14 anos desde que o primeiro álbum, Nego Moçambique, foi lançado pelo selo Segundo Mundo, de Dudu Marote. O segundo e último álbum, La Rumba Computer, foi lançado em 2007 e de lá pra cá Marcelo tem feito parcerias, lançado singles e estudado em Toronto, onde vive atualmente. A coluna #MillerMusic foi atrás do Marcelão depois de ouvir o single Pussy Control, composto por ele em parceria com Zuzuka Poderosa e Amy Douglas. Que track legal! Dá o play e corre pra entrevista.

Music Non Stop – O que mais mudou em você desde que você se mudou pro Canadá? Aliás, conta um pouco sobre por que foi praí.

Nego Moçambique – Foi uma conjunção de fatores, pessoais e profissionais. Desde que toquei no MUTEK festival em Montreal eu tive um desejo de mudar pro Canadá (especialmente pra Montreal, onde vivi um ano… uma espécie de meca eletrônica francófona na América do Norte). Conheci muita gente legal, gente que construiu os próprios estúdios (todo equipamento, synths, drum machines, sequencers, amps), “dudes” que tinham o disco de platina da Grimes pendurado no meio da zona completa do loft em agradecimento aos velhos tempos em que ele ensinara à atual popstar a usar todas essas maquinetas de fazer música… Enfim, “big time”.

Acho que a primeira coisa que muda é o despir dessa cultura latino-americana do macho, que é de uma tensão e stress sem justificativa. Sem dúvida nenhuma, fica difícil explicar como é uma sociedade BEM menos machista que a brasileira. Não é o caso de ficar “aiiinnn, o Canadá é mais avançadinho”, é apenas sobre saber que existe um outro viver, um outro jeito de conviver em sociedade. Basicamente, cada um pode ser o que quiser numa relax. É perfeito? Não. Não. Não. Mas acho que não é sobre julgar o Canadá vs Brasil. Pessoalmente, acho fácil amar essa diversidade maluca, eu tenho amigo filipino, indiano, nigeriano, israelense, mexicano, japonês, chinês, australiano, nepalês, First Nation, jamaicano, peruano… todos trazendo todo tipo de religião ou não.

Também nunca mais usei as palavras “gay”, “lésbica” ou mesmo “queer” pra identificar alguém. Mesmo. Não há mérito ou algo politicamente correto nisso, não usar essa palavras. Só um fato natural, é o que rola.

Um dia contei pra uns amigos que uma piada recorrente no Brasil quando você tem uma filha recém-nascida é certos os amigos falarem “E aí, fornecedddoooorrr!” ou “Vai pagar os pecados agora, hein?”. Preciso explicar a cara da galera? Pois bem, se você entende o peso dessa piadinha, você entende como é tirar o peso das costas de ser “macho-brasileiro”. Não que eu seja lá “Ó, que pessoa do bem!”. Eu estou falando de sair dessa chatice, desse tédio de nichos e posturas determinadas pras pessoas, dessa tensão jeca. Esse troço dentre tudo de ruim que causa nas pessoas e na sociedade, limita bastante a criatividade. Eu só vejo inspiração nisso, na interação de igual pra igual, na coisa tribal, como diria a Elke Maravilha. É constantemente renovador.

Music Non Stop – Ouvi seu som mais recente, Pussy Control, a letra é bem feminista, né? Essa pegada vem da sua vivência no Canadá? Fala um pouco sobre suas parceiras nesta track também.

Nego Moçambique – Bom, curiosamente eu não fiz a letra pra ser feminista. Era uma letra falando sobre encontrar-se com sua mulher interna, sua “anima” e sair pra dançar com ela. Na verdade, eu escrevi esse som logo que cheguei aqui. Eu morava num quarto na casa da minha amiga Donzelle.

Pedigree – Donzelle

Donzelle é uma rapper de Montreal que mantém uma verdadeira comunidade feminina em torno dela. A gente produziu algumas coisas juntos, e eu juntei essa música ao nosso repertório na época. Era apenas sobre não ter medo da sua mulher interna, sendo homem. Quando vim pra Toronto, trouxe a música comigo. Comecei a colaborar com minha amiga Zuzuka Poderosa, entre indas e vindas pra Nova York e mostrei essa música pra ela, que deu a idéia de chamar mais uma pessoa, a fantástica Amy Douglas, cantora e letrista de Boston.

Enfim, não era pra ser uma música feminista. Não tem nem como. Mas é sobre se divertir com sua mulher interior, nada muito sério. É dance music, música de festa, piada. É apenas um momentinho numa pista.

Music Non Stop – Você lançou um disco importantíssimo para a música eletrônica em 2003, com samples de Gilberto Gil e muita brasilidade. Agora a música brasileira está de volta às pistas. Você tem aquele sentimento de “eu sabia?”

Nego Moçambique – Claro! O funk, como mudou (beats, produção, lexicon coletivo), hein? E o techno brega? Teve muita coisa aí nesse meio tempo. Não só as misturas tropicais mais ululantes. Olhando daqui parece que as coisas estão todas misturadas, parece tudo um grande dancehall de rasteirinha, pagode, beats eletrônicos… uma zorra, o negócio tá realmente bom. Tem tanta gente boa, criativa. Tem o Zegon botando pra fuder MAIS uma vez! Esses caras… vieram tocar aqui em Toronto, foi demais.

Enfim, qualquer um sabia: teve um primeiro impacto de house, techno, d’n’b, IDM, jungle, acid, electrofunk… onde o primeiro instinto seria mimetizar essa informação, entender como era feito. Eu acho que eu fui dessa geração que, apesar disso, já trazia suas próprias releituras.

Marcelão tocando num puteiro no centro de São Paulo em 2004 num line-up que também tinha DJ Marlboro

Perceba: apesar de funk carioca ser sempre natural pra mim, veja quanto tempo demorou pra tocar no Lov.e! Olha o que era o funk em São Paulo (que era dominada pelo rap e pelos cybermanos) e olha hoje. Enfim, tinha que dar um tempinho pra antropofagia digital agir, sabe, só pro “kaô” do Pierre Levy ter tempo pra colar.

Outra coisa curiosa é que podemos ver esse pop eletrônico novo fazendo parte da vida das pessoas, de uma forma mais real. Não é consumido apenas por clubbers amantes de house e techno. Ao mesmo tempo, tem também uma outra galera que, mais do que mimetizar, vai fundo nos gêneros específicos, sem misturas… nós não temos mais cenas locais no mundo, né? As cenas são globais agora via web. Natural que os gêneros sejam mais do que nunca globais e domínio de todos. É o que permite um duo brasileiro de trap ser tão conhecido quanto produtores do mesmo gênero nos EUA, de onde vem o estilo.

Tem uma diferença imensa também de como o software facilitou a produção de música e deu acesso criativo a mais e mais pessoas.

Marcelão só diz VDDs: sentiu sair dos ombros o peso de ser um macho-brasileiro quando se mudou pro Canadá

Music Non Stop – Do que você mais sente saudade do Brasil?

Nego Moçambique – Amigos. Comida (tacacá em especial, não vai rolar aqui). Um ano inteiro de verão. Música.

Music Non Stop – Como é a noite em Toronto?

Nego Moçambique – Bom, a cultura musical é muito diferente. Em Toronto Downton, a música é divida entre rock, folk-derivados e hip hop. Drake é rei. Tem uma cultura dance Top 40’s como em qualquer lugar e tem os eletrônicos alternativos, mas fica tudo muito na praia de house, techno, minimal, um tanto quanto conservadores, mas tudo muito bem produzido. Tem uma cena gigante de EDM, obviamente. Tem uma influência caribenha enorme, então, tem noites de reggae, soca, dancehall. Exemplo: aquela música da Rihanna com o Drake foi gravada num Jerk Chicken [restaurante que serve frango com tempero jamaicano] do lado da minha casa. E aí começam clubes pequenos que tocam kuduro, tarrachinha (como o Bunda Lounge, de um angolano, na College Street). Durante a Primavera-Verão, a variedade aumenta muito com os festivais. Muito trap e hip hop na Toronto Great Area. E tem uma cena Vogue (os beats são sensacionais) bem famosa na noite de Toronto.

Music Non Stop – Vi que você está frequentando uma faculdade aí? O que está estudando?

Nego Moçambique – Hahahaha sim. Produção Musical. Eu senti vontade de abrir a cabeça… eu fiz Artes na UnB mas não terminei o curso. Esse curso é amplo, cobre songwriting, composição, teoria musical, toda essa parte de indústria (legal, promo, royalties, copyright etc) e uma carga gigante de estúdio, gravação, microfonação, mixagem… Os professores todos têm uns [prêmios] Junos…hahaha. Eu sei lá, nunca tive uma vida na universidade, seriamente. Eu aprendi muito com meus colegas de turma, que têm todos entre 18 e 21 anos, sobre música, novos produtores, novas bandas. Tenho literalmente escutado de tudo. Mas acho que o mais legal é você poder experimentar num ambiente sem julgamentos ou com necessidade de atender ao mercado. Grande laboratório.

Uma pequena questão sobre o Canadá é o frio

Music Non Stop – Continua usando sua MPC pra compor? O que você incorporou nos seu setup agora que comprar “importado” não é mais um problema?

Nego Moçambique – Sabe, eu sempre trabalho com um setup enxuto. Uma MPC, uns synths. Mas tem coisas tipo processador de vocal, pads de percussão… mesmo guitarra, baixo. Tem um sequencer MIDI chamado Carbon que cria música usando padrões gráficos. Acho que o fato de poder ir nas lojas, tocar nos equipamentos, testar a esmo me faz pensar milhões de vezes antes de comprar algo. Não fico mais encantado com equipamentos. É sempre sobre idéias.

Music Non Stop – Canadá é um país frio, né? Isso afetou de algum jeito a sua maneira de fazer música? Ou o resultado?

Nego Moçambique – Eu só sinto mesmo que o negócio da música é mais simples. Tem mais a ver com o que você sente e com o que se faz sentir e menos com o quanto você é bom. Eu cresci numa cultura onde tem o Djavan, o João Gilberto, Paulinho Nogueira. Na minha cidade fica o Clube do Choro. Tipo, se você chegar tocando uns acordes simples, umas harmonias simples… não é nem considerado música! Tem que ser difícil! E quando eu tava aí, tinha uma hierarquia musical engraçada: música erudita, que é mais importante que jazz-MPB, que é mais importante que MPB, que é mais importante que rock, que é mais importante que rap, que é mais importante que funk e por aí vai… claro que é uma brincadeira pra exemplificar, acho que isso tem mudado e se misturado… ou cada um na sua, certo? Não sei se existe mais essa defesa de um segmento como sendo mais “respeitável” do que o outro. Eu mudei bastante meu jeito de entender música e formas de música, sem muitos julgamentos. Poder ser analítico sem julgar.

Então, num sentido geral é muito mais relaxado. Eu me sinto mais focado em emocionar do que produzir bem. Além dos “beats”, vou lançar farto material não-dançável nesse ano de 2017.

Music Non Stop – E, o povo quer saber, quando você vem tocar no Brasil?

Nego Moçambique – Quando tivermos um Presidente eleito? Eu estou fazendo outro live act. Eu e a Zuzuka passamos um tempo colaborando e viajando muito, fizemos Europa, América do Norte pra caramba, nem lembro mais… e demos uma passadinha no Brasil. Tem um material dessa safra que vai ser lançado em forma de single durante 2017. Faz tempo que eu não toco sozinho… passei por essa fase de produzir outras pessoas. Outra aventura maneiríssima. Eu ainda não sei quando vou tocar no Brasil, provavelmente quando meu novo live act estiver pronto.

QUER MAIS COLUNAS #MILLERMUSIC? AQUI

Claudia Assef

https://www.musicnonstop.com.br

Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

× Curta Music Non Stop no Facebook