De mulher pra mulher, Adriana Arakake conversa com uma de suas maiores inspirações
Tinha por volta de 20 anos quando ganhei esse grande presente. Moon Pix (1998) era o nome do álbum. A voz tinha uma mistura de suavidade com intensidade emocional, o poder de transmitir melancolia e tristeza ou esperança e liberdade. A capacidade de expressar sentimentos profundos criou uma conexão poderosa com seu público, com performances comoventes e memoráveis.
Além disso, Chan Marshall, ou Cat Power, como é conhecida artisticamente, era uma inspiração pra mulheres que não se encaixavam no molde convencional, que gostavam de música e que buscavam algo além do que era imposto a garotas daquela idade.
Inúmeros discos depois disso e com uma carreira muito bem consolidada, Cat Power se apresenta dia 19 de maio no C6 Festival, trazendo interpretações de canções de Bob Dylan.
Tive o imenso prazer de conversar com esse ícone da música; segue nosso delicioso papo franco, de mulher pra mulher.
Adriana Arakake: Você me inspirou muito nos anos 90. Uma garota fora do padrão de feminilidade, fazendo rock. Hoje você é uma mulher, mãe, ativista política e continua compondo, produzindo e influenciando outras mulheres. Como tudo isso reflete em sua carreira e em seu amadurecimento como artista?
Cat Power: Ah, não muito bem. Pessoas que não me conhecem, até mesmo pessoas que me conhecem, se opõem a eu ter essa voz nas redes sociais. Acho que não é muito bom para minha carreira estar interessada em outras coisas, mas sempre me interessei pelo mundo ao meu redor. Acho que é por isso que me tornei compositora; porque eu tinha que fazer alguma coisa. Eu queria ser poeta, estava escrevendo poesia, estava pintando… Como mulher e mãe solteira — nunca fui casada —, tenho experiência. Não consigo deixar de ser forte. É algo que faz parte de mim.
Eu também sou mãe e também sou solteira.
Nós temos que ser fortes em um mundo de homens e isso é um fato. Mas estou mais feliz do que já estive em muito, muito tempo. A compaixão que mostramos a nós mesmas, em tempos como hoje, como mães solteiras, o mundo ao nosso redor, com tanta guerra e tanto ódio, temos que lembrar de sempre ser compassivas conosco e garantir de nos nutrirmos mutuamente, porque somos incríveis. Quantos anos tem o seu filho?
18 e 16, uma menina e um menino.
Menino e menina? Uau! Um casal. Você fez um bom trabalho. Estamos indo bem, você está fazendo um bom trabalho, nós somos incríveis…
Você sente ou já sentiu alguma dificuldade como mulher na indústria da música?
Absolutamente, em toda indústria, em todo lugar. Sempre me lembraram de que sou uma mulher. Eu não percebia, eu só pensava em como todo mundo é igual na sociedade, mas me fizeram me sentir pequena tantas vezes por causa dos meus seios e da minha vagina. Demorou muitos anos para eu parar de acreditar que era pequena, frágil, louca ou estranha por causa da forma como a sociedade me fez sentir em todas as minhas capacidades, em todos os empregos que tive.
Não significa que não se importavam comigo ou que não eram meus amigos, mas ainda tenho relacionamentos com homens que continuam fazendo parte disso. Alguns ainda nem sabem como ouvir, porque são tão reativos e tão psicologicamente presos contra nós que, infelizmente, provavelmente nunca acordarão para a nossa força e nossa compaixão. Quando minha gravadora me abandonou e tive que começar de novo, foi muito difícil por muitos anos, mas no fim, me tornei mais poderosa. Sinto-me mais confiante, sabendo que tive que recomeçar só porque sou mãe. Ser mãe não é nada sexy, mas me importo menos com o que pensam agora. Agradeço por ficar mais velha e ser compassiva com o divino feminino que temos como mulheres. Somos muito fortes.
Suas composições são frequentemente elogiadas por letras introspectivas e emotivas. Como é o seu processo de composição, e o que lhe inspira?
Sempre vem de uma vez só. Parece que tenho uma mensagem me esperando, sabe? Tenho uma mensagem na minha alma e preciso muito rapidamente chegar a um piano ou violão e traduzir qualquer que seja essa mensagem, qualquer que seja esse sentimento, com palavras. É assim que escrevo minhas músicas. Sou muito sortuda por ter isso. Acho que todos nós temos. Talvez algumas pessoas chamem de espírito santo, mãe universo ou algo do tipo.
Quando lobos decidem uivar juntos, há algo natural. Sinto que todos temos algo que vem até nós, e a gente escolhe o que fazer com esse impulso. Muitas pessoas têm isso muito forte e acabam escolhendo drogas e álcool, porque não entendem o que fazer com esses sentimentos, ou escolhem ficar em silêncio e manter a cabeça baixa porque não entendem esse tipo de impulso dimensional.
Ao longo de toda a sua carreira, você fez covers de músicas de artistas renomados, como Phil Phillips, Billie Holiday e Bob Dylan. O que te motivou a criar um show especialmente dedicado a ele neste momento?
Nunca tinha me apresentado no Royal Albert Hall, em Londres. Recebi um convite, era o fim da minha turnê de covers, e foi aí que eu disse: “quero fazer esse show do Bob Dylan”. Achei que seria um bom encerramento para a turnê de covers. Algumas semanas mais tarde, pensei que deveria gravá-lo, e a recepção da ideia foi ótima. Pessoas do mundo todo, do Brasil, da China, estavam me dizendo para trazer o espetáculo aos seus países. Decidi gravar porque talvez eu não consiga levar o show para qualquer lugar. Demorou um pouco para começar porque financeiramente eu estava muito quebrada, então a Domino Records gentilmente ofereceu o dinheiro para gravar o álbum, e cá estamos.
Vai ser incrível assistir a esse show.
Todo show sempre parece uma grande festa no final. Vejo muitos rostos mais velhos, de pessoas que nunca vi nos meus shows antes. Talvez tenham visto Dylan nos anos 60. Os vejo curtirem com muita emoção. Posso sentir o passar do tempo com essas músicas, viajar com eles ao longo de suas vidas… No final, alguns se levantam, cantam as letras em voz alta, às vezes passo o microfone para alguém, e parece que estamos todos no mesmo time.
Quem iria imaginar que estaríamos vivos nesse mundo louco com esses governantes loucos, onde acontecem tantas coisas horríveis, e que poderíamos tirar uma noite de folga pra cantar juntos músicas do Bob Dylan? É como estar na casa de alguém querido, se sentindo acolhido.
Você teve a oportunidade de conversar com o Dylan sobre esse projeto?
Não. Eu tive a sorte de coincidentemente ficar no mesmo hotel que ele em Glasgow. Pude abraçá-lo, ele me colocou na lista para seu show e soou mais lindo do que nunca. Sua voz estava perfeita. Mas não me importo com o que o Bob pensa sobre esse disco, porque quando você dá a alguém um presente do seu coração, você realmente não se importa com a resposta. A maioria das pessoas faz discos [de homenagem] post-mortem. Bob ainda está conosco, e quer ele ouça ou não, aprecie ou não, não é o ponto. Eu queria dar flores a ele dessa forma, e trazer alegria para as pessoas que nunca tiveram a chance de vê-lo nos anos 60.
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Não tem nada que me emocione mais que a música. Poder conversar com uma mulher tão importante foi realmente muito forte, e admiro a Cat Power ainda mais. Nos despedimos com muitas risadas, combinando de comer feijoada e sair pra dançar no Rio de Janeiro. Chan Marshall cantando Dylan vai com certeza ser um shows que vou guardar com todo carinho, assim como essa entrevista tão harmônica e sintonizada. Não vejo a hora.