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1ª DJ residente mulher na Pachá, BLOND:ISH mostra como machismo segue vivo na cena eletrônica
Anunciada recentemente pela icônica casa de Ibiza, a artista canadense vai apresentar sua noite, Abracadabra, durante este verão europeu
Por incrível que pareça, foram precisos mais de 50 anos para que a Pachá, um dos maiores e pioneiros clubes de Ibiza, tivesse sua primeira temporada com uma DJ mulher em toda sua história: a canadense BLOND:ISH. Sim, parece absurdo e não é exclusividade da casa. Comandada por homens, a ilha festeira tem mostrado uma surreal resistência em relação à igualdade de gêneros. E embora tenha ótimas DJs e produtoras que moram nela, a predominância masculina nos postos principais dos clubes e festas segue gigantesca.
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Uma das características mais interssantes na cena eletrônica de Ibiza são as temporadas, nos moldes do que acontecia com os clubes de jazz da primeira metade do século XX. Grandes artistas são convidados a passar algumas semanas do local, se apresentando em dias fixos para um público que pode estar pisando na festa pela primeira vez ou retornando para curtir duas, três ou dez vezes seu DJ preferido. O formato faz com que a temporada se torne algo vivo, com o artista conhecendo cada vez mais a casa, o sistema de som e o seu público, e assim evoluindo cada vez mais na conexão com sua pista de dança. As noites de despedida das temporadas de Ibiza costumam ser épicas.
Nos clubes, temos o DJ residente. O cara fixo na casa, que convida outros artistas, faz a abertura e o encerramento e acaba sendo um patrimônio do clube. Nas temporadas, a coisa acongtece de uma forma diferente: primeiro, porque tem data para acabar. E em segundo, porque geralmente são convites feitos a DJs conhecidos mundialmente. As temporadas abertas na ilha são divulgadas desde o interior do aerporto, com banners promocionais de clubes orgulhosos dos grandes artistas que conseguiram trazer para sua pista. Significa, portanto, uma tremenda validação à carreira de um DJ.
E no caso do anúncio de BLOND:ISH, a marca tardia de um movimento que já deveria estar na cabeça dos produtores de Ibiza há muito tempo. A Pachá já teve DJs mulheres como convidadas ou residentes em suas festas. Mas uma temporadona assim, cheia de pompa e circunstância, só foi dada a artistas mulheres agora, após o clube ter trocado de dono em 2023. A Pachá foi adquirida por um grupo de investidores do entretenimento chamado Five.
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“Há igualdade de oportunidades? Definitivamente não. Tem algo estranho lá [em Ibiza]. A ilha ainda é controlada por agentes e donos de clube com pensamento antigo”, declarou, sem papas na língua, o CEO da Five e novo dono da Pachá, Aloki Batra, à revista Billboard. O novo chefe deixa claro que quer trazer outra mentalidade à ilha.
Com seu novo álbum Never Walk Alone, lançado na última sexta-feira, 14, Vivie-ann Bakos, a BLOND:ISH, comandará a noite Abracadabra, e declarou que nunca focou em ser a primeira em qualquer coisa, apesar de compreender a dimensão histórica do feito.
Quando vivia em Montreal, Vivie-ann e a amiga Anstascia D’Elene Corniere se tornaram DJ residentes da festa que daria reconhecimento internacional a suas carreiras. “Vamos lá ver as BLOND:ISH”, diziam os fãs, entendendendo que o nome era das artistas, e não do rolê. Bem, a voz do povo dançante é a voz de Deus: Bakos assumiu de vez o avatar e o projeto ficou conhecido mundialmente, principalmente depois de se mudar para Londres, em 2010, para estudar produção musical. Anstascia ficou em Montreal e seguiu com sua carreira de DJ.
O fato de Bakos e a Pachá estarem comemorando o feito mostra que ainda falta muito a conquistar no cenário eletrônico mundial. Importante dizer que o Brasil tem se mostrado uma referência na luta pela igualdade de gêneros, com iniciativas como o Selo Igual, criado pelo WME. A indústria está tomada por homens, principalmente nas áreas administrativas e técnicas, o que sempre causa comportamentos opressores às mulheres, graças ao cafonérrimo machismo estrutural.
DJ ganesa radicada na França, Pö falou sobre o assunto em entrevista recente durante passagem pelo Brasil, que será publicada em breve no Music Non Stop:
“Tem muita coisa ainda a ser feita em todos os lugares. Iniciativas em prol da igualdade são cruciais, precisam acontecer em outros países. E em setores como os de cultura, música e criatividade, são urgentes. É bom saber que as mudanças estão acontecendo, mas muita coisa precisa ser feita”.
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No ano passado, falamos com a argentina Aluminé Guerreiro sobre o assunto. “Eu nunca me senti tão segura e confortável nos bastidores de um festival de música como aqui”, disse ela, que tocava em um evento cuja produção foi feita, em sua maioria, por mulheres (o CoMA 2024).
Poucas palavras são suficientes para compreender o que as mulheres passam fora dos palcos. Em números, um relatório assustador do Parlamento Britânico, de 2024, apontou o panorama atual.
Que a temporada de BLOND:ISH em um dos mais icônicos clubes de Ibiza seja um sucesso. Tanto musicalmente, quando na função maior de mudar um statuos quo bastante enraigado nas pedras de Ibiza e no resto do mundo. Competência para isso, a DJ tem — assim como milhares de outras artistas que ainda sofrem com a desigualdade causada por um mercado controlado por homens.
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