Ouvintes Imagem gerada pela Inteligência Artificial da Meta

Artistas sem ouvintes: o paradoxo da abundância musical

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Jota Wagner reflete sobre estudo do Music Radar, que aponta que mais músicas são lançadas em um dia de 2024 do que no ano inteiro de 1989

“15 milhões de artistas, com 15 ouvintes cada um.” O lema, de origem desconhecida, é usado há algum tempo em conversas dentro de estúdios sobre a era em que vivemos no mundo da música, com a evolução do ambiente digital. Um momento em que tanta gente compõe, produz e lança suas próprias músicas, que acaba sendo mais fácil encontrar um artista do que alguém interessado em ouvi-lo.

Quando se popularizou, lá nos tempos do MP3, o slogan tinha um certo exagero cômico. Parece que não mais. Imagine que ao acordar você decida se atualizar musicalmente e escutar tudo o que foi lançado ontem. Seriam precisos 250 dias para zerar a lista. Um estudo publicado pelo blog Music Radar (via Mixmag) aponta que, em 2024, 120 mil novas músicas são lançadas por dia nas plataformas de streaming. Número maior que a soma de todo o ano de 1989. Isso significa que, a cada ano, quase 44 milhões de novas faixas são apresentadas ao mundo. A maioria delas produzida e lançada de forma independente, com os esforços únicos de um artista desconhecido.

Estamos falando de democratização da música como expressão pessoal? Sim, certamente. Mas também de um oceano de produções de qualidade duvidosa ou, pior, boas faixas em que o autor não tem nenhum conhecimento ou dinheiro para promovê-las. O resultado é assustador: 90% das músicas do banco de dados do Spotify, por exemplo, foram ouvidas apenas entre zero e dez vezes, segundo estudo de 2023 da empresa Luminate Data.

A enorme quantidade de novas músicas faz com que a gente dependa de uma coisa que todo mundo (principalmente o artista) odeia mais do pernilongo: o algoritmo. As empresas precisam manter o interesse do ouvinte escondendo de sua vida o que acreditam não lhe agradar. Ao mesmo tempo, precisam satisfazer as grandes gravadoras, fonte de renda para as plataformas de streaming quando investem rios de dinheiro para promover suas Beyoncés, Brunos Mars e Anittas. Então, chega-se a ao velho dilema do ovo e a galinha. A gigantesca maioria de músicas sem ouvintes é culpa do algoritmo? Ou o algoritmo é que existe por culpa dessa avalanche de lançamentos diários?

E então, a tecnologia

O crescimento da criação e publicação de música é mais fácil de explicar. Tem a ver com a tecnologia. Os computadores ficaram mais potentes e baratos. O mesmo aconteceu com os softwares de produção de música que, além de terem recursos inacreditáveis, foram se desenvolvendo para uma interface mais amigável, para que sejam utilizados não só por profissionais ou músicos, mas qualquer um que queira se arriscar a fazer um som.

Se antes era necessário ler uma partitura, hoje basta arrastar bloquinhos coloridos com o mouse. Uma mudança no modelo de negócio das empresas de software, a partir da virada do milênio, contribuiu muito com esta febre. Em vez de vender seus programas, optaram por oferecer uma assinatura mensal barata. Sabe a história dos “15 milhões de artistas”? Pois é, as criadoras de softwares de música precisam deles, e incentivam seu crescimento. Milhões pagando 10, 15 dólares por mês, resultam em uma fortuna entrando no caixa mensalmente.

E se estamos falando em tecnologia, a novidade que acaba de chegar tem o poder de multiplicar os números de uma forma ainda mais assustadora. Sou daqueles que gosta de bater papo com motorista de aplicativo. Ao saber da minha profissão, um deles começou a me mostrar as músicas que produzia usando Inteligência Artificial. Não tinha conhecimento algum com instrumentos. Nada era “real”, incluindo as vozes. Me mostrou um sertanejo cantado por uma dupla e um pop-trap, em inglês, com uma vocalista feminina. O encontro aconteceu às vésperas das eleições municipais de 2024. O motorista cobrava 500 reais de candidatos a vereador para fazer um jingle de campanha. “Faço em menos de cinco minutos”, contou.  A que me mostrou como exemplo, gravada com qualidade que parecia a de um grande estúdio, era uma paródia do tema de Tropa de Elite para um candidato vindo da Polícia Civil.

Eu precisaria de uns 20 cérebros para me atrever a entregar aqui um exercício de futurologia sobre o mundo da música e seus reflexos na carreira dos artistas profissionais. Mas uma coisa parece clara: a única mudança real neste sistema só será possível com o iminente reset que o planeta Terra está prestes a dar na raça humana. De outra forma, dificilmente se volta atrás em algo tão poderoso. Um adesivo do Smiley colado no vidro de um carro e um quadro do Van Gogh são a mesma coisa: arte plástica. Na música, no entanto, diferenciar a qualidade entre um e outro, como no exemplo acima, está ficando cada vez mais difícil para o ouvinte comum.

Enquanto isso, seguiremos discutindo o que é arte e o que não é. Pois debater sobre quem é “artista”, pelo jeito, já virou coisa do passado.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.