O Sónar completou 30 anos de história, numa edição grandiosa nos últimos dias 15, 16 e 17 de junho. Uma audiência de 120 mil pessoas dançou por 3 dias e 2 noites com um line-up de encher os olhos de tão impecável.
Eu voei até Barcelona para celebrar a chegada dos meus 50 anos da maneira como mais gosto de estar no mundo: Uma pista de festival e num dos meus favoritos.
Line-up de gente grande e de quem não apenas está atento ao que está acontecendo no mundo, mas continua olhando para o futuro. O Sónar sempre se posicionou como um evento que explora a música do futuro e não decepciona. É o festival que anualmente reúne grandes nomes da música eletrônica do passado, do presente e desse enigmático futuro, muitos dos quais a gente nunca ouviu falar, mas que um dia serão headliners de grandes festivais e poderemos falar: “Eu vi num palco para 500 pessoas lá no Sónar“, como foi o caso da Rosalía, que eu vi em 2018, só para citar um exemplo mais recente.
A curadoria é sempre primorosa e a expectativa para uma festa celebrando suas três décadas estava lá em cima. Não me enganei! O Sónar tem a proeza de juntar todas as gerações de uma maneira muito sofisticada. Às vezes a gente torce o nariz para uma lista de nomes escalados para o festival, mas quando chega lá tudo faz sentido e vamos deixando nossos preconceitos de lado.
Eu gosto de como o Sónar transita entre o pop e o experimental sem medo de errar e de maneira orgânica. É interessante ver como o festival também pode ser um lugar para formação musical de um público que hoje consome música praticamente só no TikTok (ou nos games).
Antes de embarcar, eu mergulhei no line-up que, à primeira vista, revelou poucos nomes conhecidos enquanto eu ouvia esta playlist. Confesso não ter curtido muita coisa. Seria um erro a decisão de ir para lá? Reggaeton, amapiano, R&B, pop, música de videogame e uma pitada de EDM pareciam dominar o repertório. Mas, como sempre, ao chegar lá eu só me deparei com surpresas boas enfileiradas me esperando.
Esta edição foi histórica no quesito visual. Não pouparam no investimento tecnológico com telões de LED de alta resolução e projetores potentes.
Nomes conhecidos no line-up não eram muitos para mim. Eu praticamente conhecia só a galera 40+ do festival: 2ManyDJs, Tiga, Eric Prydz, Richie Hawtin, Black Coffee, Âme & Marcel Dettmann, Ryoji Ikeda, Daito Watanabe, The Blessed Madonna, Max Cooper, Bicep, Oneohtrix Point Never, Nosaj Thing, DJ Marky, e alguns mais jovens, como Peggy Gou, Honey Dijon, Lucrecia Dalt e Deena Abdelwahed. Mesmo não sendo fã de toda a lista, eu já tinha artistas suficientes para ocupar a agenda nos três dias, o que de fato aconteceu.
Dois festivais em um
O Sónar faz dois festivais grandiosos em um. A edição diurna rola por três dias e é um pouco menor, além de contar com a programação Sónar D+ voltada para a indústria da música. O dia tem uma agenda mais ousada e experimental, além de contar com workshops, palestras, debates e uma feira, um playground para encher os olhos de qualquer produtor musical. Esta edição continuou a discussão iniciada em edições anteriores sobre inteligência artificial, web3, metaverso e realidade virtual, aumentada e mista. Já à noite, o festival vira uma grande rave. Acontece num lugar maior com um público de cerca de 20 mil pessoas a mais do que a edição diurna e é necessário um deslocamento de uns 15 minutos entre uma venue e outra.
Quando a noite começa, a programação do dia ainda não terminou, ou seja, sempre há conflito na agenda, pois enquanto o headliner do dia encerra a festa, o headliner da noite está abrindo o palco principal. Uma jogada de mestre, pois o festival à noite já começa lotado.
O Sónar Dia é o lugar perfeito para quem ama música eletrônica
São cinco palcos para shows diurnos, além dos palcos que abrigam as palestras. O Village é o palco principal do Sónar Dia e o único na área externa. Este ano aumentaram a cobertura com um teto cobrindo toda a pista e também a área a VIP, que fica estrategicamente posicionada nos fundos. Nele, se apresentam artistas mais conhecidos da música eletrônica com vertentes mais pop e nomes que estão começando a dar o que falar. Amapiano, R&B, reggaetton, rap, funk carioca, música pop e house music transformaram o Village no palco mais concorrido e animado.
Palco Village
Eu, que ainda não tinha vivenciado uma pista de amapiano, me entreguei feliz à live animadíssima do sul-africano Musa Keys, um dos maiores nomes desse estilo musical, que ganhou as pistas do mundo. O grande destaque ficou para a linda festa promovida pelo DJ Black Coffee, também sul-africano, que agrada a todos os tipos de público. Dos jovens aos mais velhos, todo mundo dançou, pulou, cantou e pediu mais. Ele começou com um set chiquérrimo e aos poucos desceu ladeira abaixo sem pudor. Já quase no final do set, emendou uma acapela de “Show Me Love” (Robin S.) com “Music Sounds Better with You” (Stardust) e “I will Survive” (Gloria Gaynor). Foi a trilha sonora perfeita para uma farofa impecável fechando o primeiro dia.
O destaque do segundo dia foi The Blessed Madonna, sempre uma festeira incansável. Ela teve o stage design feito com pessoas da comunidade LGBTQIA+, que dançaram loucamente em volta dela e da frase em neon WE STILL BELIEVE durante todo o set. Vê-la tocar é sempre divertido e um prazer imenso, pois, diferentemente da Peggy Gou – que foi adequadamente descrita como uma DJ genérica por um amigo – The Blessed Madonna parece se divertir tanto quanto o seu público. Dancei até doer o quadril e fiquei querendo mais.
Já no terceiro dia, o destaque no Village foi o 2ManyDJs invite Tiga & Peach. A tarde foi a mais quente dos três dias de festival. Sempre bom revê-los no palco. Uma nostalgia toma conta de mim me levando para uma época que parece muito distante. Eles começaram bem, mas uma hora depois ficou bem difícil para os meus ouvidos. Notei que a galera mais jovem se manteve animada na pista, ou seja, o 2ManyDJs se rejuvenesceu (eu que envelheci mesmo).
Vi também um DJ set bem solar e dançante com Bradley Zero b2b Moxie, um set brilhante de house music e faixa percurssivas. Apimentando a festa, o rei da vogue-house, MikeQ, que estreou este ano no Sónar, fez um set de ballroom house calorento, obrigando todo mundo a suar na pista de sexta-feira.
O SonarPark, o palco mais simples da versão diurna, mas não o menor, apresentou um pot-pourri de estilos musicais predominantemente techno e vertentes. Foi o palco que eu menos frequentei, mas vi um ótimo DJ set do Omagoqa, da África do Sul, que nos brindou com um set gqom, estilo de música eletrônica surgido nos anos 2010 em Durban, a cidade de origem do trio, com influências de ritmos africanos e house music. A Badsista fez um b2b com a Cashu e mandaram ver no batidão, mas estava difícil concorrer com a The Blessed Madonna que tocou no mesmo horário.
Palco Complex+D
Um dos meus palcos favoritos durante o dia foi o Sónar Complex+D, que apresenta uma programação mais cabeçuda e é lugar para explorações sonoras e visuais. Fica num teatro com ar-condicionado, ou seja, ótimo para descansar entre uma pista e outra. É o palco perfeito para deixar a mente viajar. Nele, eu vi um show lindíssimo e hipnotizante da Lucrecia Dalt. Também vi Kode9, Sabrina Bellaouel, Grievous Bodily Harmonics que, como prometeram, promoveram um verdadeiro ataque sonoro.
Entre os shows que rolaram no Complex+4, eu lamentei perder o da espanhola CLARAGUILAR, e “Hyper O.”, da dupla Carles Viarnès e Alba G. Corral.
O meu segundo palco favorito foi o SonarHall, que sempre abriga artistas emergentes e renomados da música eletrônica, muitos deles experimentais, e todos com um trabalho visual contundente. Nele, eu vi os meus dois shows favoritos de todo o Sónar 2023: Ryoji Ikeda e a Deena Abdelwahed. O Oneohtrix Point Never apresentou seu novo show “Rebuilds”, feito em parceria com o artista visual Nate Boyce, que nos impressionou com os visuais – já a música confesso ter menos frescor do que costumava ter.
O produtor britânico Max Cooper tem feito um dos shows mais bonitos visualmente. Vi recentemente em Berlim, mas a estrutura tecnológica do Sónar, com um projetor poderoso com painel de LED atrás e duas camadas de tela semi-transparente, uma na frente do artista e outra atrás, causam um impacto visual poderoso. Cooper, que é biólogo de computação por formação, sempre tem a biologia e a matemática como centro do seu trabalho visual. Mas, confesso, quando ele envereda pelo drum’n bass, eu fujo. Definitivamente não é meu rolê.
O ápice do festival veio com a apresentação única do mestre Ryoji Ikeda. Apesar de não ser um show fácil, afinal é literalmente “noisy music” acompanhada de flashes violentos sendo lançados para a plateia. Antes dele entrar no palco, um texto no telão alertava “Este espetáculo inclui luzes e flashes que podem afetar pessoas com epilepsia fotosensível”. Não duvido! Ikeda apresentou o álbum “Ultratonics” (2022) com uma projeção com flashes ininterruptos com um extenso catálogo de glitch eletrônico.
Alguns definiram ser uma versão mais pop do artista, mas é ousada essa afirmação. Para mim, foi uma aula magistral de storytelling, com direito a um final épico, em que os habituais visuais preto e branco dera lugar à uma galáxia colorida explodindo, levando o público ao ápice da energia.
A produtora tunisiana Deena Abdelwahed apresentou seu novo álbum Jbal Rrsas, que será lançado em agosto, ao lado de um outro músico, responsável pelos beats. Um show dançante e hipnótico. Todos fomos seduzidos pelas batidas árabes e os visuais fluídos. Ela cantou (e gritou) um pouco em árabe, enfeitiçando ainda mais a plateia com a sua voz suave. Foi um dos meus shows favoritos do festival e um delírio que me fez sentir o cheiro da areia do deserto.
Dois artistas para ficar de olho são Bendik Giske, saxofonista norueguês (e meu vizinho em Berlim) que conecta o saxofone com a música eletrônica de maneira peculiar e única, enquanto Marina Herlop, me remeteu à uma versão catalã da Björk, fez um show quase nos levando para um outro plano, musical e espiritual ao criar uma fuga mágica durante seu show, onde pássaros cantando se fundem com instrumentos distorcidos, vozes e outros sons.
Palco Stage+D
O Stage+D é o palco com a cenografia mais bonita onde um telão ocupa todo o fundo e cada lateral.Três telões de LED de alta definição estão posicionados na vertical, rendendo projeções belíssimas. Além da música, este palco também abriga apresentações de projetos sonoros e visuais. O meu show favorito neste palco foi do Nosaj Thing que, ao lado do mestre do audiovisual Daito Manabe, brilhou em um dos shows mais bonitos do primeiro dia. Ele apresentou seu último álbum Continua, provavelmente um dos melhores trabalhos de sua carreira. No começo, o público ficou deitado no chão hipnotizado pelas paisagens sonoras requintadas e contemplativas com as quais o show se inicia. Mas aos poucos a música e o visual vão crescendo, o público se levanta e permanece dançando até o show terminar. Um arrependimento: Ter perdido o show solo do Daito Manabe.
Sónar Noite: uma grande rave
A programação noturna começou na sexta-feira, o segundo dia do festival. É sempre uma correria ir para o Sónar Noite, porque geralmente o primeiro show é o mais esperado da noite, enquanto ainda estamos curtindo o mais esperado do dia.
A abertura na sexta-feira foi com o Aphex Twin, um dos artistas que eu mais queria ver. Cheguei no começo do show e me deparei com Aphex Twin ocupando uma espécie de gaiola, fazendo com que quase desaparecesse no palco. O que importava ali não era a sua figura. Eram os elementos visuais, que contavam com um chamativo cubo de luz suspenso sobre a gaiola, além de lasers frenéticos que preenchiam de luz a plateia lotada. Um show totalmente diferente do que assisti há 12 anos exatamente no mesmo palco. Muito maior, muito mais profissional. Aphex Twin só cresce mesmo sendo grandioso desde os anos 1990! O momento mais bonito foi quando tocou Facebang (Acid Mix), do Eprom, criando um climão que nos levou para uma galáxia distante. O final veio com Mt Saint Michel + Saint Michaels Mount, do álbum Drukqs (2001), que nos jogou para dentro de um videogame, tornando difícil seguir dali para qualquer outro lugar.
Para retomar o fôlego do excesso de estímulos que foi o show do Aphex Twin, corri para ver o Fever Ray, que tocou no SonarPub, um palco a céu aberto. Show intimista, com uma cenografia minimalista com o palco iluminado por um poste, Karin Dreijer e sua banda formada apenas por mulheres nos seduziu com sua voz ondulante e uma performance magnífica. A tecladista, usando um acessório enorme na cabeça em formato de nuvem, dividia a atenção do público entre ela e Dreijer. Eu saí enfeitiçada.
Depois desses dois shows grandiosos, eu decidi abraçar a grande festa que é a edição noturna. Fui para o SonarCar dançar com a dupla Âme & Marcell Detmann, que fizeram um delicioso b2b all night long. Este palco virou o nosso refúgio certo sempre que não encontrávamos nada que nos agradasse pelo caminho.
Mas a noite ainda contava com um show apoteótico do Bicep, cheio de lasers e uma projeção linda de morrer. Show animadíssimo perfeito para encher a pista dessa dupla, que começou a carreira como blogueiros de música, e agora estão como headliners de festival. O auge chegou com Glue com os lasers formando um teto colorido sobre a plateia. Momento de chorar um bocadinho de emoção, porque eu sou dessas.
A festa continuou com a Honey Dijon que fez um set bem pop, uma espiada na Peggy Gou, que fazia um set bem sem graça, uma dançadinha com o Solomum, que entrou num momento em que o corpo começava a pedir cama. Mas, antes de ir para casa, fui prestigiar a entrada do DJ Marky & MC GQ, que fechou o festival na sexta-feira e provou que o drum’n bass nunca saiu de moda.
A segunda e última noite teve o sueco Eric Prydz como o maior destaque do Sónar 2023 por conta de seu novo show, Holo, que passou por São Paulo em outubro do ano passado.. Eu particularmente não gosto da música, mas não deixaria de ver um dos shows mais high-tech da atualidade. Apesar da sensação de estar numa aula de spinning de quase duas horas, não dá para negar que o show visual é uma das coisas mais incríveis sendo feitas na cena visual da música eletrônica. Todos ficaram estupefatos com a projeção em LED mais brilhante e imagens holográfica em 3D. Foi surreal e compensou todo o resto.
Esta noite foi mais tranquila, pois depois do Eric Prydz não consegui decolar em mais nenhuma pista, que estava dominada por reggaetton e música eletrônica de qualidade suspeita. Dancei um pouco com a farofa do Tiga & Cora Novoa, segui meio preguiçosa por conta do cansaço para ver a Carista, que fazia um ótimo set dançante como sempre faz e, por fim, me rendi um pouco ao Richie Hawtin pelos velhos tempos, mas o corpo já estava pedindo arrego e cama. Antes, porém, fui com amigos cumprir o ritual de todas as edições que vou: brincar no carrinho de bate-bate, uma das experiências mais divertidas do festival. Saí ilesa e pronta para o próximo ano!
Não foi fácil dar conta de três dias de festivais, sendo dois deles durante o dia e a noite. Mas valeu a pena demais sobreviver para, no dia seguinte, curar a ressaca comendo uma deliciosa paella na Barceloneta e tomando sangria à base de Cava.
Que venha o Sónar 2024! Eu já estou ansiosa.
*Foto destaque: Sónar 2023 – Aphex Twin. Foto: Nerea Coll