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Como o Acadêmicos do Baixo Augusta reinventou o Carnaval de rua em SP
Jota Wagner conversa com Alê Youssef, ex-Secretário de Cultura e um dos criadores do bloco que virou o jogo na Selva de Pedra
“Quando eu pego o microfone ao final, e anuncio a data do ano que vem. Esse momento é o mais emocionante.” Assim, Alexande Youssef, um dos criadores do bloco paulistano Acadêmicos do Baixo Augusta, responde quando lhe pergunto qual momento faz tudo valer a pena na tremenda trabalheira em, como diz Sérgio Sampaio, botar o bloco na rua.
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Alê Youssef. Foto: Divulgação
“É como diz Roberto da Mata em seu estudo maravilhoso sobre cultura popular. O Carnaval talvez seja a única instituição que dê sentido de continuidade ao Brasil.”
Um dos maiores e mais emblemáticos blocos de São Paulo, responsável por iniciar um momento de renovação da cultura do Carnaval de rua e transformá-lo em uma potência capaz de reunir, por toda a cidade, 15 milhões de pessoas e movimentar mais de três bilhões de reais, o Acadêmicos do Baixo Augusta já começou polêmico e surpreendente.
“Nossa história já começou com a gente recebendo ordem de prisão porque o público estava pulando Carnaval na rua. No documento, praticamente uma peça de museu, estava escrito: ‘rua é lugar de carro’. Cheguei entrar na gaiolinha da viatura de policia, até que alguns advogados foliões, como Augusto de Arruda Botelho (posteriormente nomeado Secretário Nacional de Justiça, em 2023) e Mara Natacci, chegaram para intervir”, conta Youssef, com certo orgulho em protagonizar uma história que tinha tudo a ver com o sentido de existir de seu bloco.
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Foto: Divulgação
“Distribuímos uns 500 camisetas para amigos no primeiro ano. Mas foram mais de duas mil pessoas”, conta o carnavalista que, em tempos atuais, reúne mais de um milhão de pessoas que se encontram todo sábado anterior ao início do Carnaval na rua da Consolação para louvar a rua vizinha, a Augusta. Mesmo tendo como função principal o (não tão) simples ato de festejar com alegria, o Baixo Augusta acabou virando centro de discussões sobre o problema de São Paulo. Agregou o movimento dos ciclistas antes de a cidade ter sua rede de ciclovias. Defendeu com unhas e dentes o Parque Augusta, que por pouco não virou um empreendimento imobiliário cafona, e também recebeu, de braços abertos, o pessoal do movimento de luta por moradia. “Mas tudo isso vem depois do principal, que é a alegria hedonista de pular Carnaval”, completa.
A ideia de juntar os frequentadores da efervescida cena noturna do chamado “Baixo Augusta”, região que reunia a nata da cultura independente da cidade, veio a mentes ébrias no after de um casamento de amigos em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro: “Estávamos em um boteco, todo mundo meio bêbado. A turma que fundou o bloco estava lá. Eu, Alê Natacci e sua irmã, Mara, Marina Person, Carol Bueno, Leo Madeira e mais várias pessoas. Ali também foi criado o nome Acadêmicos do Baixo Augusta. Mais tarde, se uniram a nós Marcelo Rubens Paiva, Simoninha e Alessandra Negrini. E então deu no que deu”.
Deu num bloco que ditou rumos reunindo a esquerda jovem pensante da cidade, incluindo em sua primeira constituição regras contra o preconceito de gênero e racial. Agradou de bate-pronto. Tornou-se o bloco seguro para se pular Carnaval. O que era hype virou pop, e hoje é um dos maiores da cidade. O Acadêmicos do Baixo Augusta acabou de cumprir mais um ano de seu desfile, no último dia 22 de fevereiro, homenageando Jorge Aragão, com o tema A Força dos Nossos Pagodes.
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Alessandra Negrini desfilando no Baixo Augusta. Foto: Divulgação
A turma está prestes a dar mais um passo em sua história ao inaugurar, no fim de março, um espaço chamado Laje do Baixo Augusta, dedicado à “música, encontros e pensamentos”, segundo Youssef. A ideia é estender para o ano todo a missão do bloco na história da cidade que o abriga. Entenda mais:
Jota Wagner: O Acadêmicos do Baixo Augusta tem uma missão?
Alê Youssef: Com cultura e arte, lutar pelo direito à cidade. Esse é o nosso grande lema, nossa meta. Uma missão de ocupação cultural. Eu me lembro que, quando eu conversei com o então prefeito Fernando Haddad, cuja gestão foi muito favorável ao Carnaval de rua, falei sobre sairmos da Rua Augusta, que já estava lotada.
“Prefeito, se você autorizar a ocupação da Consolação, você vai ter uma imagem comparável com a do Bola Preta, no Rio de Janeiro, e o Galo da Madrugada, em Recife.” Ele relutou, mas depois, com apoio, nos autorizou. Talvez tenha sido a melhor decisão pública em benefício do Carnaval de rua. Porque quando o Baixo Augusta ocupou a Consolação, da Paulista até a Praça Rooseveld, com aquela multidão, o processo se tornou absolutamente irreversível.
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Foto: Divulgação
Não dava para voltar atrás. Não tinha como um gestão nova chegar e falar: “acabou o Carnaval!”. Você tinha a foto daquela multidão gigantesca. Depois disso, outras multidões foram surgindo, no Largo da Batata, no Ibirapuera, outros blocos surgindo com muita intensidade. Depois disso, você afere impacto econômico. O negocio vira um grande projeto de economia criativa. Algo que faz girar mais de três bilhões de reais. Aí, mudou a chave totalmente.
Desde o começo do bloco, lá em 2009, o quão volátil tem sido a receptividade do poder público?
A gestão Kassab, no início, foi muito refratária. Porque era algo muito novo. Não dava para saber o que ia acontecer. Eles não estavam preparados para administrar essa demanda. Foi aquele começo de proibições e incertezas. Depois, veio a gestão Haddad, que foi quem fez o primeiro decreto de Carnaval, e adotou uma política meio que: “não vou atrapalhar, quero que aconteça”. Isso permitiu a estruturação de uma grande maioria de blocos e iniciativas. Permitiu, também, a estruturação de um primeiro modelo, em que a cidade vendia patrocínio para colocar infraestrutura, e os blocos podiam correr atrás de seus próprios patrocínios.
Depois do Haddad, o Dória tentou, de uma maneira equivocada, transformar as conquistas que tinham sido acumuladas até então. Veio com aquele papo de levar o Carnaval para a Avenida 23 de Maio. Isso gerou uma reação muito grande dos blocos. Foi o primeiro grande teste de enraizamento do nosso movimento. Nós contrapusemos essa ideia, falando: “olha, se a prefeitura quiser levar todos os blocos para a 23 de Maio, nós não vamos fazer os desfiles dos nossos trajetos, mas nós vamos fazer manifestações políticas em defesa dos nossos desfiles”. Foi um grande xeque-mate. Tanto que, em 2018, tivemos o maior desfile da história do Baixo Augusta com o tema É Proibido Proibir.
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Foto: Divulgação
Depois disso, eu assumi a Secretaria de Cultura, e tive a oportunidade de fazer aqueles carnavais gigantescos de 2019 e 2020. 15 milhões de pessoas, três bilhões [de reais] em impacto econômico, mais de 800 blocos. Um momento de muita intensidade e apoio. Mesmo com a morte do Bruno Covas, as coisas permaneceram. Nunca ninguém chegou para nós e disse “não vai ter Carnaval”. Mas claro, existem modelos que precisam ser revistos.
O que pode melhorar em relação a isso?
Tem uma equação aí que precisa ser mais redonda, que é a seguinte: se você tem um Carnaval de rua que gera 3,4 bilhões de reais na economia, não dá para você não ter uma estratégia de amparo público aos blocos, inclusive econômico. Então, a prefeitura vende um patrocínio para a cidade de 30 milhões, utiliza essa verba para infraestrutura — é realmente uma infraestrutura enorme —, e zero reais desse recurso vai para os blocos.
Faz apenas um microfomento via Secretaria de Cultura, que paga 25 mil reais por prêmio só para cem blocos, o que não dá para pagar nem o carro de som. Só que são 800 blocos na cidade. E aí você tem o protagonista desse processo todo, aquele que faz esse número de três bilhões da economia acontecer, que são os blocos absolutamente fragilizados, porque eles precisam buscar patrocínio na iniciativa privada para poder sair.
E aí, além desse gargalo, precisa ter outras iniciativas. Primeiro, uma estratégia pro Carnaval noturno, porque hoje em dia ele acaba às 18h. Não dá para o prefeito falar temos o maior Carnaval do Brasil, sendo que não tem o Carnaval noturno, como tem em Salvador, em Recife, no Rio de Janeiro…
De toda forma, são inegáveis as conquistas até aqui, mas a gente sempre precisa lutar por melhorias para que o principal protagonista desse processo, que é o bloco, seja, de fato, valorizada, e não sofra esse processo de apagamento.
Quando começa e quando termina toda essa correria do Carnaval? E quando é o momento que você olha ali e fala: “valeu a pena”?
O Baixo Augusta tem um marco a partir das iniciativas de rua que a gente faz ao longo do ano. Pra você ter aquela multidão, você precisa ter uma narrativa que acompanhe os fatos do ano. A gente começou processo de 2025 ali no meio do ano [passado], em maio ainda. Então, de maio até fevereiro… é muito amplo.
E neste ano nós teremos uma coisa ainda mais especial, que é o fato de a gente inaugurar a Laje do Baixo, que vai ser um novo centro cultural do Baixo Augusta, ali em frente à Praça Roosevelt e à Igreja da Consolação, onde nós vamos ter o nosso laboratório de experiências musicais, carnavalescas, comportamentais, debates… em torno desse grande processo, que é uma luta que não pode parar nunca: pelo direito por ocuparar a cidade com cultura e com arte.