A House Music é muito maior do que Erick Morillo. Ainda bem.

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Uma das maiores frustrações para um editor de um veículo que fala sobre música é ser tolhido, impedido de escrever sobre música,  por quem quer que seja.

Lidamos com empurrões e puxões diariamente: o comportamento dos leitores, o fluir desordenado de uma indústria musical que ora se comporta como um pântano alagado, ora com uma corredeira violenta, o tatear por uma sala escura à procura da porta, assombrado por uma horda de egos fantasmagóricos.

Mas, a amarra mais dolorida, aquela que aperta os pulsos a ponto de fazer com que as mãos paralisem, é quando esse impedimento (aquele, de falar de música) é causado pelo próprio artista.

Erick Morillo estava encrencado. Foi acusado pelo estupro de uma jovem que foi para um after em seu apartamento acompanhada de uma amiga em dezembro de 2019. Negou. Um exame de DNA e testes de corpo delito desmentiram o DJ, que se calou e iria a julgamento dia 4 de setembro.  Foi encontrado morto pela polícia nesta terça, (1) e as investigações transitam entre suicídio e overdose. O DJ tinha um histórico problema com ketamina, que quase o fez perder um braço alguns anos antes.

As grandes músicas, os sets impecáveis que vimos em pistas de dança sorridentes nos fazem deslizar para o espúrio caminho, talvez afetivo, de procurar o contexto, o histórico, os caminhos que levaram um gênio da música a encontrar esse fim. A cometer esse crime. A chamar tal crime de “erro”.

Somos tentados a ponderar, mesmo com as evidências esfregadas em nossa cara. Somos tentados a ter dúvida. Que, nesse caso, é leve como uma pluma para quem não vai encarar o julgamento depois de amanhã e pesado como uma bigorna na alma de quem ficou.

E é neste ponto que corremos o risco de cometer o nosso maior erro.

Sofro por não falar de música. Egoísta. Queria ligar para vários DJs brasileiros e tomar depoimentos sobre como a música de Morillo influenciou seus sets. Mas e a garota?

Quem escreve sobre a garota que dançou, sorriu e se divertiu na pista de dança com um de seus ídolos, deslumbrada ao lado de amigos, o conheceu, foi para o seu apartamento, decidiu que não queria nada com o cara e teve sua vida virada de ponta cabeça pelo “grande gênio da house music”?

Como era sua vida? Como será daqui pra frente?

Afinal, mais do que nunca, o melhor disco é menor do que a vida de qualquer pessoa.

Ao contrário do que possam pensar os caretas de plantão, quem vive o cenário da dance music sabe o quanto é normal esticar a noite depois do fim da balada para a casa de alguém. Até hoje, para mim, isso é quase que uma etapa obrigatória de uma noite divertida.

E quem vive a noite como nós vivemos sabe também que isso não é garantia, nem promessa, nem mesmo insinuação, de um encontro sexual. Na enorme maioria das vezes inclusive esse tipo de relação está lá no fim da lista de prioridades, quando está.

Mas o gênio da house music também age para nos tirar este rolê (egoísta).  Quem vive a música como nós sabe como é usual conhecer aquele ídolo depois do show e perceber que é um ser humano, pouco interessante, ou mesmo um tremendo mala.

Separar a arte do artista? Nós tentamos. Mas obra prima nenhuma exime alguém de respeitar um “não”.

We like to move it. Muito. Mas não deste jeito.

Os discos de Erick Morillo continuarão por aí. Uma música, como dizem, é uma entidade própria, que se desprende de seu criador quando é colocada no mundo.

A house music, muito maior que ele, continua por aí.

As pistas divertidas, lotadas, sorridentes e plurais da house music também continuarão em algum momento.

Os afters, encontros de amigos, alguns feitos há uma hora atrás, continuarão por aí.

Mas hoje não tem seleção de depoimentos. Nem galeria de fotos. Nem uma playlist com faixas essenciais de Erick Morillo. Hoje, infelizmente, não falamos de música.

 

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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