Foto: DivulgaçãoJoão Parahyba: “Sou um cara de tribo e um refugiado musical”
Acabando de lançar Mangundi, seu primeiro álbum solo em 14 anos, integrante do Trio Mocotó fala com Jota Wagner
João Parahyba lançou nesta sexta-feira, 31, seu primeiro disco em 14 anos, Mangundi. Uma mistura, uma “loucura”, como ele mesmo classifica, pautada em quase 60 anos de experiência musical, desde que começou a frequentar o bar Jogral, reduto de músicos paulistanos, até virar um dos mais celebrados nomes mundiais, com parcerias com centenas de outros gênios da arte de “transmitir sentimentos para a alma”.

Além do novo álbum (que já ouvimos e nos apaixonamos), João também promete a volta do Trio Mocotó aos palcos: “Não gosto de ficar sozinho no palco. Eu sou um cara de tribo”.
João Parahyba é o percussionista/baterista/criador brasileiro que mais abraçou a música eletrônica no país. Virou brother do renomado produtor musical Mitar Subotić, o Suba, com quem se relacionou desde quando o sérvio se mudou para São Paulo, até sua morte, em 1999, vítima de um incêndio em seu estúdio. Mitar é homenageado no novo disco, assim como todo mundo que, de uma forma ou outra, passou pela vida do grande Parahyba.
Entre risos e divagações, o músico de 75 anos conversou conosco de sua casa. Valeria uma semana de conversa, com tanta história que o homem tem para contar: “Eu falo pelos cotovelos, viu, Jota?”. Falou mesmo. Só coisa boa.
Jota Wagner: Mangundi será lançado 14 anos após seu último álbum solo, Futuro Primitivo. O que levou a gravar um novo disco de inéditas?
João Parahyba: Essa história começa em 1990, quando um sérvio filho de croatas, o Suba, chegou ao Brasil. É uma história meio folclórica. Ele ganhou um prêmio da UNESCO por um balé. Levou cinco mil dólares e uma passagem para onde quisesse ir. Diz a lenda que ele rodou o globo, colocou o dedo e o país foi o nosso. Mas ele queria realmente conhecer os ritmos brasileiros, e chegou aqui no dia da posse do Collor, quando o dólar estava a um real. Pela sua conta, cinco mil dólares daria para passar seis meses no país. Mas aí, com os planos econômicos, tudo virou e a grana não daria mais para nem um mês.
Ele ligou para os amigos em Paris, contando que estava fodido, até que sua empresária o conectou com uma produtora que tinha boas relações com artistas europeus. Ela havia acabado de alugar uma casa na descidinha da Álvares Penteado [em São Paulo], com estilo suíço, e o sótão virou um loft para receber amigos internacionais que vinham para o Brasil. Convidou o Suba para ficar por lá. No dia que ele chegou, avisou que estava com fome. Desceram na padaria Bologna, ali na Vilaboim, comeu tudo o que podia e sentou em um banco no jardim.

Ali, conheceu o [músico] Edson Natale, que disse: “quero que você conheça um percussionista, o João Parahyba”. Eu morava no Sumaré e tinha um estúdio no porão. Suba chegou meio-dia e saiu de casa às 04h da manhã. Viramos irmãos. Era quase um filho, para mim. Eu havia acabado de viajar para a Europa e trazido um computador Atari 1042ST, que ninguém conhecia por aqui, e montei uma workstation.
Com todo o conhecimento que eu tinha de vida, na Berklee, São José dos Campos, Vale do Paraíba, música folclórica, era impossível imaginar minhas músicas com violoncelo, violinos, trompas, metais, porque eu tinha que ir para o estúdio e gravar tudo isso. De repente, eu tinha uma orquestra inteira no meu computador, comecei a compor usando a tecnologia. Suba ouviu e me perguntou o que era, se era um disco. Eu disse que não. Já havia mostrado para uns amigos e eles disseram: “isso é música feita no computador, não serve para nada”. Trabalhamos juntos até 1998.
Eu estava trabalhando com o Suba e conheci Béco Dranoff, produtor brasileiro que morava nos Estados Unidos. Começamos a produzir o disco da Bebel Gilberto, que acabou estourando. A maior parte das bases do disco foram feitas no computador e reprocessadas. Pegávamos o áudio acústico e transformávamos em efeitos maravilhosos… Suba era um gênio.

Produzi então um disco do Trio Mocotó, que foi para a Europa e estourou. Aqui, ninguém mais chamava a gente para tocar. Lá, fizemos mais de 700 shows em dez anos. Nesse meio tempo, o Béco descobriu que eu estava fazendo música eletrônica. Mostrei o disco que estava fazendo sozinho, com arranjos no computador, e ele falou: “eu vou lançar isso aí!”. Então, após 20 anos, consegui lançar o primeiro disco só meu [Kizumba, de 1996].
É muito louco um percussionista aceitar a coisa da música eletrônica. Seus colegas acabam achando tudo “quadrado” demais…
Cara, eu tenho 58 anos de carreira… Comecei com 16. Entrei direto na música, na noite. Minha intenção sempre foi ser um percussionista dedicado à música brasileira. Só que João Parahyba, com toda a instrução que teve, não se considera um percussionista ou baterista, mas um criador.
Quando eu tive a possibilidade de ter uma ferramenta em que eu podia colocar o som de um passarinho, de uma máquina de escrever, de um piano, um vibrafone, foi como se eu tivesse ganho o pote de ouro do arco-íris. Com o computador, eu posso fazer tudo que eu imagino. De repente, surge um outro maluco, o Suba, que pegou minha educação musical mais formal e me disse: “esquece isso tudo, bicho. Faz sua música, não tem essa de introdução, parte A ou B”.
Sou um passarinho livre nesse universo musical, um dos primeiros percussionistas brasileiros a mexer com bateria eletrônica, samples e loops. Por isso, fiquei amigo dos DJs. Eles entendiam que eu sabia a linguagem deles.
O Futuro Primitivo é um banquete pra DJ, né? Aquelas faixas lineares, percussivas…
O Futuro Primitivo tem uma história interessante. Eu sou muito amigo do André Geressat, guitarrista, e toquei com quase todos os músicos que ele conheceu. Ele conseguiu o patrocínio do presidente do Banco do Brasil para fazer um projeto que era gravar toda a música instrumental brasileira. No arquivo dele, tem mais de 800 horas de gravações pelo país inteiro. Ele me falou: “João, não tem um percussionista aqui. Você não quer fazer alguma coisa?”. Eu já trabalhava com o Suba, e respondi: “estou fazendo um negócio com um sérvio, mas é muito maluco”. E maluquice era justamente o que ele queria.
Eu dividia o estúdio com o Suba. Eu gravava de manhã e ele chegava à tarde, pegava tudo o que eu havia tocado e transformava em outra coisa. Isso é o Futuro Primitivo.
O show era eu sozinho no palco, com 300 percussões, e o Suba ficava no PA, reprocessando tudo ao vivo. Graças a Deus, foram os únicos 45 shows solos que fiz na minha vida. Foi maravilhoso, mas não sou um solista. Não gosto de ficar sozinho no palco. Eu sou um cara de tribo.
Mangundi, o novo lançamento, é um álbum de grupo. Escolhi os amigos que pudessem criar junto comigo. Peguei um pedacinho do coração e da alma de cada um. “Mangundi” é uma palavra que eu escuto desde criança no Vale do Paraíba. Significa algo mais um menos assim: você vai pra casa de noite, cansado do trabalho, chegar quase 05h horas da manhã, e quer comer alguma coisa. Abre a geladeira, mistura um pouquinho de arroz, um pouquinho de batata, põe tudo numa panela e faz um mangundi.
Essa mistura virou uma coisa meio filosófica pra mim. A mistura da imigração, de cultura, de cores, de sons, tudo isso tem a ver comigo. O Trio Mocotó tem um negro, um mulato e um branco. O Vinicius de Moraes falava: “aquelas três raças tristes”.
Dentre esse monte de gente com quem você já trabalhou, quem foi que mais te desafiou?
Dizzy Gillespie. Ele apareceu no Jogral, depois de um concerto no Theatro Municipal. Ficou uma semana aqui e ia todos os dias para o bar dar uma canja com a gente. Eu já havia tido experiência com músicos americanos, mas o Dizzy foi um cara muito aberto. Ele disse: “quero gravar com vocês”. Arrumaram um estúdio, todo mundo foi para lá e tocou.
Michel Legrand foi outro que também me impressionou. Ele queria me levar de qualquer jeito para fora. Não fui por causa do Trio Mocotó. E, cara, outro que eu posso dizer que quebrou a minha cara foi Jorge Ben. A gente criou o ritmo para ele, mas ele tinha uma coisa diferente. Conseguimos criar uma identidade juntos. Uma identidade de quarteto.
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Outra grande referência para mim é Milton Nascimento. Não tanto pela música, mas pela personalidade. Um cara que virou meu amigo no primeiro contato, e continuaremos assim até um de nós morrer. Ele sempre soube valorizar as cores da música, as percussões. Naná Vasconcelos também é outro cara fora do contexto. Ele e o Airto Moreira.
Eu sou um privilegiado, cara. Fiz tudo o que queria, e tudo o que eu nem havia imaginado ou sonhado em fazer. Essa é filosofia do Hermeto Paschoal, do Milton Nascimento, a filosofia brasileira. Eu valorizo muito isso, e o mundo acabou valorizando o Brasil.
Hoje estou trazendo aqui um disco que é uma mistura de todas as minhas influências, uma mistura filosófica de tudo que tem que acontecer e não tá acontecendo no mundo, que é esse negócio de migração e de imigrantes. Todo mundo é imigrante. Todo mundo é cidadão.
São quase 60 anos de carreira. O que ainda existe daquele moleque de 16 anos que ia lá no Jogral tocar bateria?
Ele mesmo, inteirinho. Uma das vantagens que eu tenho é que a criança que existiu em mim nunca morreu. Minha dificuldade de vida, de ter crescido numa família que era industrial, que queria que eu fosse industrial, mas eu só descobri um foco: a música. Mesmo nela, eu tenho essa bagunça.
Eu sou um bagunçado musical. Um refugiado musical. Eu não sou roqueiro, não sou DJ, não sou regional, nem bossa nova. Eu participei de tudo com Rita Lee, com Simonal, com música regional, com Chitãozinho & Xororó, com músicos americanos de jazz, músicos suecos.
Então, eu me considero um fora da caixinha. Graças a Deus, porque eu gosto disso tudo. Não pode ter barreira, sabe? A música é um dos comunicadores mais universais de sentimentos para a alma.



