Quincy Jones Will Smith e Quincy Jones nos bastidores de ‘Um Maluco no Pedaço’. Foto: Reprodução

Como Quincy Jones e Will Smith macetaram o racismo nos anos 90

Jota Wagner
Por Jota Wagner

A série Um Maluco no Pedaço, que ajudou a colocar o hip-hop nos lares americanos, foi mais um golpe de mestre do lendário produtor musical

O legado que Quincy Jones deixou para a música é irretocável. E o que especificamente dedicou ao hip-hop, de uma forma inesperada e absolutamente visionária, muitas vezes passou despercebido do grande público, tão atento às suas estripulias no mundo da música pop, em álbuns históricos como Thriller, de Michael Jackson, ou até mesmo a intensa articulação que tornou possível sucessos gigantescos como o disco beneficente We Are The World, ou o uso de toda sua influência para tentar unir Prince e Michael Jackson. Quincy sempre foi cara.

No final dos anos 80, o músico, produtor e mestre das trilhas sonoras se dedicou a uma luta que nos mostra seu gigantismo pessoal. Muito mais preocupado com o racismo do que com a música propriamente dita, o homem direcionou seu foco para mais uma batalha em sua vida: acabar com o preconceito da mídia e da classe média em relação ao hip-hop nos Estados Unidos. Um estilo musical que havia conquistado o coração da juventude de todas as classes sociais, mas que ainda era massacrado nos meios de comunicação conservadores.

A saída mais óbvia seria emprestar seu talento para produzir algum artista. Mas isso não era digno de um enxadrista como Jones. Dele, se esperava uma jogada de mestre. E foi o que conseguiu, usando duas peças de imenso poder: um simpático rapper adolescente e o meio de comunicação mais abrangente da época, a TV.

Quincy Jones queria fazer com que “a cultura hip-hop entrasse na sala de estar dos lares americanos”. Primeiramente, mapeou as principais chagas. A de que o rap era uma música de quebrada, violenta, feita por e para negros que, na cabeça dos racistas, jamais deveria sair dos bairros pobres. O segundo passo era definir qual a melhor porta de entrada. Como entrar em todos os lares sem pedir licença? A resposta veio fácil. A TV, através das sitcoms (séries de comédia), unanimidade entre as famílias, uma febre de audiência nos Estados Unidos.

Quincy Jones também foi o responsável pela criação da clássica música-tema de Um Maluco no Pedaço

O plano perfeito estava no papel. Jones foi atrás de um astro do hip-hop carismático, divertido, que tivesse um trabalho musical com viés pop e, claro, fosse negro. Chegou em Fresh Prince, nova sensação do rap, que hoje todo mundo conhece com Will Smith. Precisou de apenas duas semanas para convencê-lo a encarar o desafio de ator. Mas, convenhamos, quem em sã consciência diria não para Quincy Jones?

Com a tarefa resolvida, começou a desenhar o sitcom, e aqui temos uma prova do tamanho da genialidade estratégica do cara na primeira produção televisiva em que se envolveu pessoalmente. The Fresh Prince Of Bel-Air (ou Um Maluco No Pedaço, como conhecemos aqui) — série idealizada por Benny Medina, na qual Quincy trabalhou como produtor executivo, ajudando a moldá-la e vendê-la à NBC, e que foi ao ar em 1990 —, foi um bombardeio no racismo durante a noite, quando não se podiam ver os aviões. O uso do sistema contra o sistema.

No roteiro, uma família rica, dona de uma mansão em Bel-Air, cujo pai é um advogado proeminente e os filhos estudam nos colégios mais caros da cidade, recebe um sobrinho da Filadélfia para criar e educar. Um garoto de roupas espalhafatosas, muitas de estilo afrocêntrico, jeito divertido e zombeteiro. Todas as características (estilo, cidade de nascimento e jeito de ser) do próprio Fresh Prince real, que já havia conquistado a molecada com hits como Summertime e Nightmare On My Street. Todos os personagens do núcleo principal da série são negros.

 

Nada de perifa de Nova Iorque, escolas públicas, metrôs pixados. Uma família de classe alta, vivendo no luxo, naturalmente. A ascensão do negro estadunidense na seleta faixa dos bem-nascidos. O racismo não era discutido em profundidade, mas estava na sutileza do roteiro sua grande arma. Sucesso de audiência desde o primeiro episódio, Um Maluco No Pedaço combatia o verme do preconceito racial entrando diretamente no estômago dos americanos, sem que eles sequer percebessem.

O sucesso da sitcom abriu as portas para uma porção de outras produções que vieram depois, e também de profissionais e empresas que se dedicaram justamente a seguir a mesma estratégia de combate, caso da Wayans Bros. Entertainment, que criou a série amada no Brasil Eu, a Patroa e as Crianças, com o mesmo propósito.

Quincy Jones colocou a cultura hip-hop dentro da casa do branco, que se divertia com todos os capítulos, e ajudou a levar o gênero para o pop mainstream. Os anos 90 foram a década do hip-hop nos Estados Unidos. Graças ao mestre!

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.