Machado tirando onda na Times Square, em NY

A incrível história do DJ que trouxe boa parte da música eletrônica pro Brasil na mala

Claudia Assef
Por Claudia Assef

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Alguns dos roteiros mais interessantes do cinema costumam esconder o protagonista até surpreendentemente revelá-lo e dar aquele nó na cabeça das pessoas.

Na vida real não é diferente. A entrevista que você está prestes a ler começou a ser planejada em 2002, quando eu estava começando a mapear as entrevistas do livro Todo DJ Já Sambou, que escrevi em 2003. Depois de ouvir vários DJs das antigas, senti que precisava encontrar um tal Machado, que DJs como Gregão, Sylvio Muller, Sônia Abreu, Marky e outros haviam citado como sendo o maior vendedor de discos do país. Me lembro como se fosse hoje das histórias que o Grego contava sobre as caravanas que ele armava com DJs de Sampa, que rachavam gasolina  pra ir ao Rio de Janeiro comprar discos e ver o Ricardo Lamounier tocar na boate New York City Discothèque.

Procurei o Machado por um tempo, mal eu sabia que ele havia deixado o Brasil para morar por cinco anos nos EUA.

Foi só no ano passado que consegui uma pista sobre seu paradeiro. No backstage de uma festa em Amsterdam, o DJ Marcelo Abreu me disse que era amigo do Machado e que ele morava em Niterói (não me pergunte como chegamos a esse assunto no meio da balada). Eu fiz o Marcelo prometer que nos apresentaria. De volta ao Brasil, comprei uma passagem pro Rio de Janeiro e fui até Niterói conhecer o famoso Machado. Com essa entrevista nascia o site Music Non Stop <3

Lá estava um sujeito alto, de cabelo liso, bigode, me esperando no estúdio de gravação de um amigo. Carlos Machado, 55 anos, nascido em 11 de julho 1960 em Niterói, DJ com mais de 40 anos de cabine, produtor musical, engenheiro de som autodidata e o maior dealer de discos que o Brasil já teve, finalmente estava ali na minha frente.

Pelas mãos, malas e sacolas dele, entraram milhares de discos de vinil no país. “Entre 1975 e 1994, 90% do que entrou no Brasil, eu que trouxe. Não só de black music, não, tá? Electrofunk, disco music, discofunk, música eletrônica, soul music”, diz o DJ, que nos anos 90 ganhou o apelido DJ Nazz (de nazista), por conta de seu estilo rolo compressor de ser.

Machado em sua loja a céu aberto, na confusão do Malódromo, no Largo da Carioca

Machado em sua loja a céu aberto, na confusão do Malódromo, no Largo da Carioca

Machado foi o vendedor oficial dos principais DJs e das maiores boates e equipes de som do país. Nunca teve loja. Vendia tudo para clientes fiéis. Mas também para desconhecidos, em sua “loja a céu aberto”, na confusão do Malódromo, no Largo da Carioca, Centro do Rio. Colocava malotes com discos e equipamentos no chão. Quem chegasse primeiro e pagasse o preço, levava.

Machado tomou gosto pelas viagens em busca de pepitas sagradas em forma de vinil. Foram mais de 200 viagens, entre Nova York (onde trocava café e leite de rosas por um lugar pra ficar), Miami, San Francisco, Los Angeles, Londres, Atlanta, Amsterdam…

Machado numa de suas viagens a Londres

Machado numa de suas viagens a Londres

Comprava discos por US$ 2,99. Vendia no Brasil por US$ 10. Ganhou muito dinheiro. Mas também gastou muito dinheiro. O preço que pagou por tantas viagens foi alto. Se afastou do dia a dia da profissão de DJ e viu colegas levando louros por descobertas suas. Foi ele quem trouxe pela primeira vez ao Brasil o disco 808 Volt Mix de Los Angeles, que virou a batida oficial dos primeiros funks carioca.

“Meus amiguinhos começaram a ir pro rádio, ficaram famosos, só que esqueceram de dizer que os discos vinham pelo céu, mas não caíam do céu. Esqueceram de dizer que existia um cara chamado Carlos Machado que era quem trazia essas coisas”, reclama.

A história de como Carlos Machado botou o Brasil na rota dos discos e equipamentos importados você lê agora. Prepare-se para muitas emoções.

O DJ Carlos Machado na Carjul em Miami

O DJ Carlos Machado na Carjul em Miami

Music Non Stop – Quando você teve contato com discos pela primeira vez?

Carlos Machado – Como toda criança, tomei contato em casa. A decisão de fazer disso o negócio da minha vida foi aos 14 anos. Ouvia rock na rádio e minha mãe dava dinheiro pra comprar um disco por mês. Eu comecei a colecionar as músicas de que gostava, mas começou a ficar difícil de encontrar muitas delas. Poderia até gravar do rádio com fita k-7, mas quis ir atrás dos discos.

1 - em San Francisco

Music Non Stop – Nessa época já tinha alguma loja de importados no Rio?

Carlos Machado – Não tinha nada. Estamos falando de 74. Só fui ter contato com importadora depois de 75, eu já estava com mais idade e ousava sair de Niterói e ir pro Rio. Fui buscar as músicas que eu queria em importadoras. Conheci pessoas que trabalhavam com viagem, comissários de bordo, aeromoças… daí eu passava uma lista pra eles e eles me traziam os discos. No começo era só pra eu curtir, mas, quando você começa a ter música, teu amigo te chama pra tocar nas festinhas. Daí outro amigo gosta e chama também. Daí você começa a virar o cara que tem as músicas. Quando eu tinha 15 pra 16 anos, um amigo meu chamado Jean, que tinha um poder aquisitivo melhor, montou uma miniequipe de som. Ele conheceu um pessoal de um grupo chamado Oxford, eles tinham umas quatro caixas alto-falantes. A gente pegava duas caixas, amplificadores de guitarra, duas pick-ups ruins demais, um amplificador Pro 2000. Não tinha mixer, era na chave A e B. A gente encostava o ouvido pra ouvir o sulco do disco pra trocar as músicas. Arrumamos um clube pra tocar, o Flamenguinho, em Jurujuba. Quando entrei com a nossa equipe, que se chamava Oxford em homenagem ao conjunto, nunca mais parei. Em 2016, completo 42 anos como DJ profissional.

Machado (ou Carlinhos como era chamado pelos amigos) em 1986

Machado (ou Carlinhos como era chamado pelos amigos) em 1986

Music Non Stop – E daí você virou DJ. Mas e essa outra função tua tão importante, que foi de importar os discos, como começou?

Carlos Machado – Na vida a gente tem que ter sorte e eu tive. Conheci um cara chamado Jorge Alexander Boleckis, que tinha uma firma de importação e exportação de válvulas de rádiotransmissão. Ele vivia indo pra Nova York e gostava de música. Então ele me trazia os discos de presente, e a única condição era que eu gravasse fitas pra ele. O Jorge foi um grande incentivador pra mim, me ensinou muitas coisas. Ele tinha telex quando ninguém tinha. Então a gente mandava um telex pras lojas e ele chegava lá e só pegava os discos. Ele tinha conta em um banco americano então eu dava os dólares a ele, ele dava um cheque nominal a loja, eu colocava no correio e, bingo, tudo muito fácil. E foi assim que eu comecei a ter disco! Daí eu comecei a conhecer pessoas que tinham discos também, donos de equipe de som de soul music. Eles chegavam na importadora e levavam tudo. Antigamente o cara comprava todos pra ninguém mais ter a música. Tinha dois amigos meus, Banana e Capitão, que ficavam de binóculo no baile pra ver o rótulo, o nome do disco, no baile.

Tocando na Dancing Garden Art Disco, em Niterói

Tocando na Dancing Garden Art Disco, em Niterói

Music Non Stop – Não tinha essa coisa de riscar o rótulo?

Carlos Machado – Isso veio depois. Esse lance de tirar o selo do disco era uma forma de proteção. Hoje é muito fácil ter as músicas, todo mundo tem acesso. Mas naquela época era ouro. Era muito difícil arrumar um disco. Às vezes você conseguia lotar um baile por causa de uma música exclusiva, que só você tinha! Por exemplo, tem uma música que eu tocava e dizia “exclusiva, essa música você só ouve aqui”. Só o (DJ) Corello tinha outro desses. Era essa, Loc It Up. Toquei isso como exclusivo anos, só eu e o Corello tínhamos! Essa coisa de raspar o rótulo começou em 84, 85, justamente porque nós começamos a viajar, e viagem é um negócio muito dispendioso. Você não vai viajar, pagar hotel, comida, hospedagem, pra trazer poucos discos. E isso envolve uma série de coisas. Quando eu viajava, havia uma concorrência. Outros caras que compravam fora eram o Tony, Fernandinho, que era DJ também.

Leprechaun – Loc It Up

O verdadeiro DJ é o maestro, é o comandante. Ele que diz como as coisas funcionam. Hoje as coisas se inverteram. Os DJs estão esperando a música tocar no rádio pra tocar nas festas. Nós não. Nos tocávamos no baile, os divulgadores de gravadoras iam nos ver tocar.

Music Non Stop – E eles levavam discos pra vocês tocarem?

Carlos Machado – Eu nunca peguei suplemento em gravadora. Nunca precisei. Achava uma humilhação ter que tocar um disco nacional, eu tinha tudo importado. Os divulgadores das gravadoras iam aos bailes olhar o que estava acontecendo, o que estava “batendo” no baile pra eles poderem lançar. Então nós tínhamos pelo menos um ano, dois anos, na frente de qualquer um.

Machado em Los Angeles, na distribuidora JDC, com Eddie Fonseca

Machado em Los Angeles, na distribuidora JDC, com Eddie Fonseca

Music Non Stop – Como você chegava às músicas, onde buscava informação?

Carlos Machado – O DJ tem que ter feeling. Eu sei quando uma música é boa e vai “bater”. Descobri centenas de músicas que viraram sucesso no Brasil todo até hoje. Mas também tem algumas técnicas pra sacar as músicas com potencial. Saber quem é o produtor é uma forma. Porque antigamente, se você chegasse numa distribuidora e abrisse um disco, você tinha que pagar, não podia ouvir e depois comprar. Às vezes também era no risco, você arriscava e pronto. E também tinha revistas Cash Box, Billboard e Dance Music Report, que era fininha, mas eu achava a melhor de todas, era underground. Ali tinha uma parada de break que não tinha na Billboard. Músicas que eu descobri nessa onda, por exemplo, T-Ski Valley, Catch The Beat. Isso é underground, entendeu? Os caras produziam uma pequena quantidade, botavam num carrinho e saíam vendendo no Bronx. Quem comprou ali comprou, entendeu? E várias dessas estouravam no Brasil, e o cara lá de Nova York nem sonhava.

T-Ski Valley – Catch The Beat

 

Outra forma de descobrir música era gravando os programas de rádio de DJs de Nova York. Meu amigo gravava pra mim. Eu pegava a fita cassete, ouvia e pedia as músicas pra ele trazer. Outra forma ainda era lendo as revistas e arriscando. Se fosse ruim, eu perdia uma cópia. Mas se fosse bom, eu mandava vir logo 50 discos. Havia uma demanda muito grande, todo mundo queria os discos.

Ainda tinha as pesquisas que a gente fazia em algumas boates. Essas casas traziam muito disco importado. Casas como o Sótão. A gente ficava na cabine ouvindo o Amândio. Eles não gostavam disso. Então se viesse um T-Ski Valley, o Amândio detestaria. E passava pra gente. Ele pegava as disco music. O Sex Appeal (da Sophie de Saint Laurent), por exemplo, veio do Amândio. Ele mostrou pra gente. E eu já tinha minha fonte, que era o Boleckis, toda semana ia pra Nova York, pedi pra ele trazer. Toquei por anos com exclusividade.

Sophie de Saint Laurent – Sex Appeal


Music Non Stop – Me conta alguma coisa que você lançou e que depois popularizou pra caramba?

Carlos Machado – São centenas.

Machado tirando onda na Times Square, em NY

Machado tirando onda na Times Square, em NY

Music Non Stop – Me conta a primeira que você lembra

 Carlos Machado – Não tenho primeira de cabeça. Toquei Madonna, Everybody, ninguém sabia quem era. Depois Depeche Mode, Strange Love, nunca tinham tocado. Em 78, 77 já tinha músicas exclusivas que só eu tocava no baile, do Barkays, LTD

Madonna – Everybody

Music Non Stop – E como você chegou por exemplo até a Madonna?

Carlos Machado – Madonna eu simplesmente ouvi, gostei e acabou. O DJ é isso. Tem um discernimento de saber o que é bom e o que é ruim. Daí você botava uma vinheta “exclusivo” e, pow, tocava pra 5.000 pessoas no baile. Todo mundo dançava e acabou.

Gino Soccio – Try It Out

Garimpo do ouro em Nova York

Garimpo do ouro em Nova York

Music Non Stop – E quando você começou a trazer grandes quantidades de discos pro país, como você fazia na entrada?

Carlos Machado – Havia várias formas de se colocar o disco aqui dentro. Tinha as aeromoças e comissários de bordo. Eu ia e ficava um mês em Nova York e mandava uns discos por eles. Nova York já era uma cidade cara. O primeiro lugar que eu fiquei foi no YMCA, que é um lugar com banheiro coletivo, o quarto é do tamanho de um ovo. Ali é baratinho. Depois eu conheci uns brasileiros que moravam em Nova York há 30 anos, e pagava pra ficar na casa deles. Eu pagava com cigarro, leite de rosas, jornal, café. Eu levava uma bagulhada danada pros brasileiros. E voltava com os discos. Até hoje se eu for pra Londres, pra Miami, Los Angeles, Nova York, Atlanta, eu posso ficar na casa das pessoas.

À procura de músicas pra bater no baile, em Miami

À procura de músicas pra bater no baile, em Miami

Music Non Stop – Por que você ficava esses períodos tão longos?

Carlos Machado – Para poder catar os discos nos porões das lojas, pois arrumar discos era uma tarefa muito difícil e tinha que garimpar. A história da viagem começou da seguinte forma. Seu Milton, pai do MC Batata, dono da Grand Rio, equipe de som da qual eu era o discotecário número 1, o número 2 era o Marlboro, foi na minha casa um dia pra fazer uma proposta. Eu era um cara durango, usava todo o dinheiro que eu ganhava pra comprar discos. Eu falava inglês porque tinha feito um curso pra entender as letras das músicas. Fiz o curso pensando em dar aula pra ter uma segunda fonte de renda. Eu era muito pobre, mas claro que sonhava em conhecer Nova York. Eu sempre fui meio místico e acho que a gente atrai as coisas que a gente quer do universo. Comecei a juntar moeda de dólar, mapa do metrô de Nova York, mentalmente eu já sabia andar no metrô de lá. Daí seu Milton vai na minha casa e fala: “Carlinhos, quer viajar pra Nova York?”. Eu falei: “quero”. “Eu vou te pagar tudo. Você não vai ganhar nada, só a viagem. E vai trazer discos pra mim. Você aceita”? Topei na hora. Isso foi em 86. Desci no aeroporto Kennedy, quando fechou aquela porta atrás de mim, suei frio. O Boleckis tinha me dado a dica: “salta em frente ao Madison Square Garden, olha 360 graus e você vai ver o YMCA”. Saltei igual um paraíba no meio de Nova York com uma mala. Só que eu já comprava discos pelo correio, então tinha todos os endereços das lojas. Tinha até conta em algumas lojas. Fui pra Downstair Records, falei com o Mr. Nick, “I’m Carlos Machado, from Brazil”. Ele já me conhecia e me tratou superbem. Fui na Downtown Records, do Mr. Frank, que acabou virando a minha loja favorita, porque o dono era de origem latina. E tinha um gerente chamado Albert Marrero, que conhecia todo mundo em Nova York, qualquer buraco de gravadora independente, qualquer estudiozinho que tinha alguém produzindo um beat, o cara conhecia. Eu dei uma lista na mão do Albert, em três dias eu tava com todos os discos na Downtown. Ele me arrumou os discos mais raros que você possa imaginar. Eu tive essa sorte.

Com Mr. Frank, dono da Downtown Records, em Nova York: loja atendia DJs como Frankie Knuckles

Com Mr. Frank, dono da Downtown, em NY: loja atendia DJs como Frankie Knuckles

Music Non Stop – Quantos dias você ia ficar?

Carlos Machado – Dez dias. Mas em três eu já tinha resolvido toda a minha lista, graças ao Albert. Daí fui passear, bater perna. Com o lucro dessa viagem, seu Milton comprou um carro 0 km.

Music Non Stop – Quantos discos você trouxe?

Carlos Machado – 300 discos.

Machado preparado pra enfrentar a volta pra casa com o carregamento

Machado preparado pra enfrentar a volta pra casa com o carregamento

Music Non Stop – E como você entrou com eles?

Carlos Machado – Mandei um parte pelo Correio e outra por comissários e pilotos. A outra veio comigo, mesmo assim paguei uma multa no aeroporto.

Music Non Stop – E essa foi a primeira de muitas viagens…

Carlos Machado – Foi. Seu Milton se animou. Quinze dias depois eu tava eu Nova York de novo. Eu era o comprador perfeito. Eu conhecia as músicas, conhecia o baile, sabia o que ia “bater”. E nisso houve uma concorrência. O Tony Minister viajou bastante também, não tanto quanto eu. Mas eu tinha duas vantagem: falava inglês e tinha o Albert Marrero, da Downtown. Depois de um ano que eu comecei a viajar, ele falou pra mim que ia deixar a Downtown Records porque ia se envolver com gravadora. E ele era meu porto seguro. Eu pensei, “tô ferrado”. Mas ele foi sensacional comigo, me deu a agenda dele de presente e me botou em contato diretamente com a JDC de Los Angeles, Bassin e HL de Miami. E abriu portas pra que eu falasse com as gravadoras e distribuidoras indicado por ele.

Playlist com os discos quentes pra comprar

Playlist com os discos quentes pra comprar em novembro de 1986

O mr. Frank, dono da loja, fez um escritoriozinho pra mim em cima da loja, com um fax. Então eu comprava em nome da Downtown. Comecei a comprar nos EUA todo. Chegava disco de tudo que era lugar pra mim. A Downtown era uma loja que atendia DJs como Frankie Knuckles. Era uma loja que vendia novidade e músicas antigas também. E eles recebiam coleções inteiras de DJs. E eu era o primeiro a poder vê-las. Eu tirava o que eu queria. E só depois ele botava o resto à venda. Eu tive essa sorte. Enquanto meus concorrentes iam comprar em loja, eu já tava comprando em distribuidoras e em quantidade. Então eu não só recebia as músicas que eu pedia, mas vinham pilhas de discos promocionais. Vinha muita merda também. Cansei de jogar disco fora em Nova York. Assim eu descobri o Volt Mix, que foi a música que fez o funk carioca, né? Quem quisesse ouvir Volt Mix, tinha que ir no meu baile, porque durante um ano, ninguém mais tinha.

DJ Battery Brain – 808 Volt Mix

 

Music Non Stop – Essa música acabou dando origem ao funk carioca, né?

Carlos Machado – Durante 20 anos os DJs tocaram essa batida. Mas não é a música que representa o funk carioca, na minha opinião. Quem diz que o funk carioca veio do miami bass está errado. O primeiro loop usado muito pelo funk carioca é Planet Rock, do Afrika Bambaataa. Depois misturava com Ice-T, The Challenge, também de Nova York, depois misturava com o inglês Jive. Depois é que o miami bass chega. E a principal batida é de Los Angeles, o Volt Mix.

Music Non Stop – Você começou a viajar pra Nova York, mas depois passou a ir pra outras cidades também, né?

Quarto de hotel ou loja de discos?

Quarto de hotel ou loja de discos?

Carlos Machado – Eu comecei a ir de 15 em 15 dias. Aí eu decidi ir pessoalmente aos lugares onde eu comprava por telefone. Resolvi ir pra Miami, comecei a abrir contas nas maiores distribuidoras de discos de lá. Eu tinha crédito. Se eu quisesse pegar US$ 10 mil em discos, eu pegava. Daí fiz a mesma coisa em Los Angeles. E comecei a viajar pra tudo que era cidade com grandes distribuidoras ou que tivessem algum bom depósito de discos. Em São Francisco eu entrei num depósito tão grande que passei uma semana lá dentro olhando caixa por caixa.

Machado 3 dentro da Bassin, a maior distribuidora de discos de Miami

Machado 3 dentro da Bassin, a maior distribuidora de discos de Miami

O Albert abriu esse caminho pra mim e eu fui. Me tornei o cara que mais trouxe disco. A concorrência não me aguentou. Mas isso me tirou o foco um pouco do mercado do DJ, de estar tocando no baile. Dai meus amiguinhos começaram a ir pro rádio, ficaram famosos, só que esqueceram de dizer da onde vinha os discos, porque os discos não caíam do céu, não. Vinha pelo céu, mas não caía do céu. Muitos esqueceram de dizer que o Carlinhos existia, né… dizer que existiam um cara chamado Carlos Machado que era quem trazia essas coisas. Fico chateado porque essa pessoa com quem você está falando fez a sonoridade dos bailes no Brasil. Não é no bairro, não. No Malódromo, no Largo da Carioca, as pessoas do Brasil inteiro iam lá comprar.

Mr. Carlos Machado, frequent flyer da Pan Am

Mr. Carlos Machado, frequent flyer da Pan Am

Music Non Stop – Como rolava a venda no Malódromo?

Carlos Machado – Era no meio da rua. Pegava os malotes cheios de discos, botava no meio da rua e vinha todo mundo. Nego de Brasília, São Paulo… Eu nem sabia que estava fazendo história. Lá tinha uns 20 vendedores de discos. Pelo menos 10 eram meus.

Music Non Stop – Vários DJs de São Paulo, como o Grego, falavam do Malódromo, faziam caravanas pra vir comprar com você…

Carlos Machado – Vinham. Muitas vezes eles chegavam e compravam sem nem olhar o que tinha dentro. Eram malas jumbo cheias de discos. Cansei de ficar roxo carregando mala.

Machado batendo perna em NY

Machado batendo perna em NY

Music Non Stop – Você tem noção de quantos discos você trouxe?

Carlos Machado – Cara. Vou dizer que de 1975 ate 1994, 90% do que entrou aqui, eu trouxe. Não só de black music, não, tá? Electrofunk, disco music, discofunk, música eletrônica, soul music. No soul eu não fui tão forte, teve gente que começou antes de mim, como o Mr. Paulão, Funky Santos, Paulinho, Peixinho. Esses foram os pioneiros que começaram o lance da black music, eu os reverencio. Mas depois que eu entrei no jogo, aí a brincadeira acabou. Eu entrei muito de cabeça.

Machado na Calçada da Fama de Los Angeles

Machado na Calçada da Fama de Los Angeles

Music Non Stop – Vamos tentar fazer um cálculo aqui. Quanto você gastava por viagem e quantas viagens você vez?

Carlos Machado – A média do preço de disco era US$ 2,99. Eu vendia por US$ 10 aqui. Gastava uma média de US$ 5 mil. Fiz umas 200 viagens. Depois fiquei cinco anos morando em Atlanta.

Music Non Stop – Ah, essa é a quantidade de discos que você trouxe, com base nas viagens que fez, 335.440!!

Carlos Machado – Eu não tenho ideia. Só fazendo as contas assim, né?

Music Non Stop – E equipamentos, você trazia muito?

Ele mata cobra e mostra o pau: nota fiscal dos primeiros mixers Gemini que trouxe ao Brasil

Ele mata cobra e mostra o pau: nota fiscal dos primeiros mixers Gemini que trouxe ao Brasil

 Carlos Machado – Trouxe demais! Descobri várias marcas lá fora que depois viraram queridinhas dos DJs aqui no Brasil. Gemini e Stanton por exemplo, eu que trouxe pela primeira vez. A Gemini eu descobri por acaso. Queria comprar o Numark com sampler, mas ele era muito caro. Eu fui na loja SSS Electronics, em Nova York, e pedi uma dica ao vendedor de uma marca que pudesse substituir o Numark, mas que fosse mais barata. O vendedor, Eliot, me falou sobre uma nova marca muito boa que estava entrando no mercado, a Gemini, que era mais barata que a Numark. Aí eu introduzi os mixers Gemini com sampler no mercado brasileiro. Daí em diante os DJs começaram a fazer montagens. Até nisso tem a minha mão.

Também sempre tive uma obsessão muito grande por alto-falantes. Eu e o Boleckis trouxemos muitos alto-falantes JBL. A gente trazia alguns e a fábrica nos mandava os projetos. Isso em 78, 79. Daí começamos a fazer as caixas aqui. Cheguei a fazer 36 caixas de som pra Pop Rio. Tínhamos projeto de todas as caixas.

Por isso que eu descobri muita coisa em termos de tecnologia pros bailes. Eu trouxe as Technics pra Cash Box. E os mixers com sampler. A Cash Box encomendava muito equipamento, era um baile que dava muito dinheiro. Cheguei a trazer uns oito toca-discos pra eles.

No estúdio com Jane Duboc e Robin Mouser

No estúdio com Jane Duboc e Robin Mouser

Music Non Stop – Como você se tornou engenheiro de áudio?

Carlos Machado – Isso aconteceu porque eu precisei produzir quatro discos pra Som Livre (Festa Funk 1, Festa Funk 2, Top Hits e Let’s Dance). Fui convidado pelo Sergio Motta. Salvei a pele dele de um processo que a Som Livre ia tomar de uma gravadora americana. E ele me retribuiu me convidando pra fazer o Festa Funk. Tive muito bons mestres, aprendi num estúdio gospel muito bem equipado, com um computador Atari 10 40 2W30 e dois samplers da Roland W-30. Ali eu aprendi a trabalhar com o sequenciador Cubase, em 1989. Em 91, lancei o Festa Funk 1. Mas já havia participado de um disco chamado O Melhor do Funk, que tinha O Melô do Ricardão, que ficou muito famosa no Brasil. Nunca mais saí de dentro de estúdio, desde 1989 trabalho como engenheiro de áudio. Produzo, masterizo, mixo, faço tudo. Preferi me afastar dos bailes por causa da violência e foquei nos estúdios, onde estou até hoje.

Já na lida como engenheiro de som

Já na lida como engenheiro de som

Music Non Stop – Por que você foi morar nos EUA?

Carlos Machado – Porque o Brasil tem uma cultura de modismo que destruiu a indústria fonográfica. E de uma certa forma eu fui limado, quiseram me deixar fora do jogo, houve uma certa “mafiada” pra cima de mim. E eu nunca fui um cara de levar desaforo pra casa, nunca fui muito maleável. Isso dificultou muito a minha vida. Criei muitas inimizades. Nunca dei confiança pra prego nenhum. Viajei pros Estados Unidos e resolvi deixar tudo pra lá. Cheguei aqui em 2002 e vi toda uma história estranha sobre as origens do funk carioca. Fiquei louco, saí descascando geral na internet.

O mapa da mina: endereço das principais lojas dos EUA

O mapa da mina: endereço das principais lojas dos EUA

Não todas, mas a maior parte das músicas dos bailes fui eu que trouxe. A história da black music no Rio de Janeiro teve vários protagonistas. Muitas pessoas boas trabalharam com muito amor pra construir essa história. Então eu não posso admitir que um zé mané no futuro caia de paraquedas e diga: “eu sou o cara”. Olha só, ninguém é o cara. Cada um teve um papel na construção dessa história. E eu tenho o meu papel também. Já que ninguém quis contar a minha história, eu pensei. Vou meter o pé na porta e eu mesmo vou contar a minha história. Foi quando eu cheguei dos EUA em 2002 e resolvi quebrar o pau.

Carlos Machado por Carlos Machado exclusivo para o Music Non Stop

 

Mix exclusivo de discofunk feito por Carlos Machado para o Music Non Stop (janeiro/2016)

 

Claudia Assef

https://www.musicnonstop.com.br

Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.