Diamond Dogs David Bowie em 1974. Foto: Reprodução

É maio de 1974, e hoje chega às lojas o novo disco de David Bowie

Jota Wagner
Por Jota Wagner

50 anos de Diamonds Dogs

Manhã de 24 de maio de 1974, uma sexta-feira. Você acorda em Londres, expulsa seu corpo da cama e dá uma olhada na janela. Faz 15 graus lá fora. Você já estava sabendo através da Melody Maker. Aliás, todos os seus amigos estavam sabendo. Hoje chega às lojas o novo disco de David Bowie, oitavo de sua carreira — Diamond Dogs.

Você toma um café, veste seu capote e sai caminhando pela rua fria. Toma um metrô rumo à Oxford Street. Durante a viagem, se sente apreensivo. O rockstar havia matado seu personagem Ziggy Stardust e desmontado a banda Spiders From Mars. Havia lançado Alladin Sane dois anos antes. Um disco legal, mas você não gostou tanto. No ano passado, em 1973, o cara lançou um disco só de covers, Pin Ups, para amansar a gravadora. Seria o fim?

Você sabe que Bowie está afim de fugir para os Estados Unidos, com sua esposa Angela Barnett (a Angie). Os tabloides e os fãs não param de pegar no pé do casal. Chegaram a se mudar da casa de Beckenham Haddon Hall, alugando um apartamento da amiga e atriz Diana Rigg, e logo depois foram para outra casa na Oakley Street, tudo para despistar o assédio. Mas você sabe que não estava dando certo. Afinal, via nos jornais fotos de seus rolês com os novos amigos Rod Stewart e Ronnie Wood, dos Rolling Stones. Será que as novas companhias afetariam sua música?

Enfim, você chega na loja. O disco está lá, exposto na vitrine. Puta capa esquisita. Um desenho de David esquálido, meio homem meio cachorro. Você abre a capa dupla, sente o cheiro de disco novo e dá uma olhada nos créditos. A ilustração é de Guy Pellaert e você se assusta. No ano passado, você havia comprado o livro com ilustrações do cara, chamado Rock Dreams. Sensacional.

Você deixa duas pounds no balcão e se manda direto para casa, com o disco debaixo do braço. O coração acelera. Não vê a hora de subir correndo as escadas, botar Diamond Dogs na vitrola e acabar logo com essa ansiedade. Tira o disco da capa, sente novamente aquele aroma sensacional de papelão, plástico e vinil. Cuidadosamente posiciona a agulha na primeira faixa do lado A, Future Legend. O primeiro som que ouve é um gemido fantasmagórico, seguido por um sintetizador que lembra Gary Numan. Bowie, com uma voz meio metalizada, começa a recitar um poema…

“This ain’t Rock’n’Roll, this is Genocide”

“Caraca”, você pensa, “o que está passando na cabeça desse cara?”. David já tinha dado seus pulos em Nova Iorque, sacado tudo o que estava acontecendo com o rock’n’roll por lá. A coisa do glam rock, do propunk. Viu que o som casava direitinho com o que o amigo Marc Bolan fazia. As paradas de sucesso estão meio doidas em 1974. Os números um, até então, flutuavam entre o rockão do Slade até Waterloo, do ABBA. A gravadora pressionava Bowie.

Diamond Dogs, a segunda faixa, é rock’n’roll puro, cheio de influências de blues, conservador até. Você segue lendo os créditos do disco. Bowie produziu, mixou, tocou guitarra, saxofone e teclados no álbum. Você interpreta isso como gana, uma obstinação em fazer um puta disco. Hora de ouvir a terceira música do lado A, Sweet Thing. A levada lenta te faz esparramar no sofá e prestar total atenção. Meu Deus! Bowie chegou, entrou na sala. Em uma balada rock, mas recheada de soul. Seu ídolo vai do grave à mais aguda nota. Você se emociona e os primeiros sinais de alívio e relaxamento vão tomando conta do seu corpo jogado. É mesmo uma “coisa doce”.

A música cresce e você se excita. Sai dançando sozinho pela sala. É isso! Ele conseguiu. Começa a quarta música, um riff de guitarra sensacional (toca guitarra esse cara!). Você começa a dançar mais forte. Corre para pegar a capa do disco. A faixa se chama Rebel, Rebel. No segundo refrão, já está cantando junto. Aumenta mais o som. Danem-se os vizinhos.

Rebel rebel, you’ve torn your dressRebel rebel, your face is a messRebel rebel, how could they know?Hot tramp, I love you so!

“Meu Deus, que som!”, você fala sozinho, e a frase sai cortada por risinhos rebeldes. “Que filho da puta!” As duas libras mais bem gastas do ano. Era um disco de rock muito maior do que um disco de rock. Era David Bowie dizendo para o mundo pra que lado deveria ir o já surrado gênero musical. A fonte da juventude.

Acabou o lado A. Você vira o lado do disco e recomeça a jornada. Começa Rock ‘n’ Roll With Me, outra baladona rock’n’roll do jeito que só ele pode fazer, com cara de ópera. Você sente vontade de abrir uma cerveja, mas são 10h da manhã. Foda-se, você abre assim mesmo e fecha os olhos no refrão. Ouve a guitarra. Coisa épica. Sim, cara… Eu vou “rockar” com você, não tenha dúvida. Rapaz, ele deve estar ouvindo muito soul. Deve ter frequentado aquelas igrejas americanas…

A segunda música, We Are The Dead, chega para te confundir. É linda e dá uma pausa na energia. “Defecating ecstasy?” Mas de onde você tira isso, ídolo meu? Há algo desesperado na canção. Você se toca que precisará escutar mais algumas vezes para entendê-la. Mas qual o problema? Você ouvirá este disco centenas de vezes.

Algo acontece. Pianos, guitarra com wah wah e um string de violinos. Você pula do sofá novamente. A bateria entra num puta groove e você sente o coração pulsando na boca. Pega a capa de novo. A música se chama 1984 e deve ser por causa do George Orwell. Lembra as trilhas do musical Hair. Você salta pela sala. Precisa conversar com alguém, precisa encontrar os amigos.

I’m looking for a vehicle, I’m looking for a rideI’m looking for a party, I’m looking for a sideI’m looking for the treason that I knew in ’65

Você chora. Que MÚSICA! Sente vontade de morder a capa, comer o disco. Começa a penúltima faixa. Meu Deus, já está acabando. Se chama Big Brother e você dá um sorriso largo. É claro que é sobre o livro do George Orwell. A temperatura se amaina e você está feliz. Volta a pular no refrão. O LP é sensacional.

Chega o último som. Diamond Dogs termina rock’n’roll puro, do jeito que começou. É como se Bowie te pegasse em uma festa, te levasse com ele pelo espaço sideral a bordo de um Mini Cooper voador, e então te entregasse de volta na mesma pista em que te abduziu. Que loucura isso, mano.

Você escuta o disco mais uma dúzia de vezes durante a tarde. Esquece de almoçar. A noite chega e esfria mais. Você pega a sua blusa e vai para Cavendinsh, onde sabe que vai encontrar os amigos no The Ship, ponto de encontro antes da galera ir para os shows da cidade. Sextou. E sextou bonito, com Diamond Dogs.

Lá está sua turma. Você guarda, em sua boca, a maior novidade do ano. Chega empolgado, só se fala no assunto. O DJ toca Rebel Rebel. Um frenesi. Cada detalhe da música é animadamente comentado. Olhando para o sorriso dos seus amigos, você agradece por estar vivo em 24 de maio de 1974.

Dedico este texto à maior fã de David Bowie que conheço.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.

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