Todo mundo aprendeu alguma lição com Rita Lee, a minha chegou por e-mail. Sua partida deixa milhões de brasileiros desolados

Claudia Assef
Por Claudia Assef

Talvez você não tenha conhecido pessoalmente a Rita Lee, mas certamente sentia um enorme carinho por ela, como se fosse alguém da sua família. Isso porque ela fez parte do nosso cotidiano, suas músicas serviram de trilha para muitas gerações, servindo como moldura para momentos de festa, de romance, de protesto, de zoeira. Cada um tem sua música preferida, alguma frase que remeta à infância ou aquela risada que as letras dela tenham arrancado da sua alma.

A cantora, compositora e instrumentista que foi o maior símbolo de mulher fodona da música brasileira descansou nesta segunda-feira (8), após uma luta contra um câncer que teve início em 2021. Como nação, perdemos o nosso maior radar do que é ser uma pessoa que sabe rir de si mesma sob qualquer adversidade. Como letrista, aquela que atingiu o maior espectro social; falava ao coração do povão, mas sabia tocar os mais aculturados num mesmo refrão. Passava sua raiva com doçura, enfeitava a revolta com chantilly, não escondia a verdade, ao contrário, fazia com que ela passasse sob portas fechadas como um teimoso raio de sol. Rita Lee Jones de Carvalho foi a poeta mais sincerona e bocuda da música, sem jamais perder o bom humor.

O EMAIL DA RITA 

Eu tive a honra de trocar alguns e-mails com Rita. Como jornalista, no período em que trabalhei na Folha de S. Paulo (entre 1998 e 2002), consegui, não me lembro como, o e-mail dela, que era um modo bem eficiente de comunicação com a cantora. Eu era uma jovem jornalista em começo de carreira, então, ter um canal com a Rita, pra mim, era uma coisa muito valiosa. Trocamos várias mensagens, algumas eram para alguma matéria, outras, só pra falar de música, do que estava rolando no cenário. Até que um dia, mandei uma pergunta pra ela, a pedido de um colega de redação, para uma matéria que ele estava preparando, na qual diversos artistas opinariam sobre um determinado assunto. Ela me mandou a resposta, e eu, ingênua, não a avisei que não era para algum material meu. Quando a reportagem saiu, ela me escreveu puta da vida dizendo que não ia mais falar comigo. Ela estava coberta de razão, eu fui ingênua demais.

Fiquei arrasada, mas aprendi muito com esse email. Nunca mais nos falamos. O tempo passou e acabei ficando amiga de um dos três filhos do casal Rita e Roberto, o DJ e produtor João Lee, um cara generoso e apaixonado por música eletrônica. Ficamos mais próximos através de dois amigos em comum, Gui Boratto e sua mulher, Luciana Villanova. Foi de João a ideia de trazer o legado dos pais para o universo da dance music, através de um belíssimo trabalho de repaginação de sua obra feito por diversos DJs e produtores musicais brasileiros. A série de três álbuns, Rita Lee & Roberto – Classix Remix Volumes. 1, 2 e 3 , foi lançada em 2021, com curadoria de João, sob aplausos dos pais.

Na mostra de Rita Lee no MIS, em 2021, Luna e Maia com a avó, Cidinha. Rita é unanimidade entre gerações.

Outro trabalho envolvendo curadoria de João foi a exposição Samsung Rock Exhibition Rita Lee, em cartaz no MIS, em São Paulo, entre setembro de 2021 e fevereiro de 2022. Com material original selecionado pela própria artista e seu filho, a mostra reuniu memorabília guardada durante 50 anos, entre figurinos de shows, instrumentos, discos, fotos, cartaz, documentos etc. O próprio João teve a gentileza de me acompanhar, ao lado de minha mãe e minhas duas filhas, pela exposição. As três gerações emocionadas com a visita mostram bem a amplitude da obra da cantora.

Falar do legado da Rita, especialmente a parte da obra que ela dividiu com o marido, é falar um pouco sobre o Brasil. É falar sobre como toda uma geração que cresceu a partir dos anos 1970 foi criada, ouvindo as letras do casal animando de festinhas de aniversário a passeios da família brasileira, fosse dentro de um Opala ou de Fusca. Rita atravessou classes sociais, furou bolhas, entrou em nossas casas vestida de David Bowie, de princesa, de palhaça, de presidiária e fez crianças cantarem suas letras instrisecamente sacanas e inteligentes, muitas vezes falando de uma transa épica, de drogas, criticando políticos e figuras célebres ou somente curtindo um dolce far niente. Quem nunca se embananou cantando os nomes dos atores do hit Flagra, cantou “meu bem você me dá água na boca” ou se imaginou numa banheira de espumas ouvindo a voz de Rita soar tão familiar quanto se fosse a de uma tia?

Perdemos uma artista gigante, praticamente a caixa preta dos últimos 50 anos de Brasil. Que não reste mais dúvidas de que, enquanto viveu, cheia de graça, Rita Lee fez um monte de gente feliz. E como! Obrigada por tudo, Rita.

 

Claudia Assef

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Autora do único livro escrito no Brasil sobre a história do DJ e da cena eletrônica nacional, a jornalista e DJ Claudia Assef tomou contato com a música de pista ainda criança, por influência dos pais, um casal festeiro que não perdia noitadas nas discotecas que fervilhavam na São Paulo dos anos 70.

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