The Runaways Foto: Reprodução

Há 50 anos, surgia “a primeira” banda só de mulheres dos EUA

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Pioneirismo, rock’n’roll e abuso: conheça a história do grupo The Runaways

Havia um tempo em que toda artista mulher era obrigada a ter um chefe homem para começar sua carreira internacional. Os bastidores da música eram absolutamente masculinos. Donos de gravadora, empresários, produtores musicais, só macho. Hoje, a indústria da música está longe de ser igualitária, mas no dia 05 de agosto de 1975, quando Joan Jett, Micki Steele (que logo seria substituída por Jackie Fox), Lita Ford, Sandy West e Cherie Currie assinaram o contrato que formaria a banda só de mulheres The Runaways, as chaves da porta do sucesso sempre estavam guardadas no bolso de um homem. No caso da banda, de um abusador disfarçado de empresário, chamado Kim Fowley.

O mundo da música era um ambiente perfeito para a proliferação de predadores, o ser que olha para uma pessoa do gênero que lhe atrai e só consegue enxergar sexo. O glamour das revistas de música romantizando uma vida de viagens, shows lotados e dinheiro para pagar as contas fazendo somente o que desse na telha tomava o imaginária de jovens de todo o mundo. No entanto, a coisa era diferente para jovens garotos e jovens garotas. Usando-se desse cenário de sonhos artísticos, caras como Fowley criavam para si um reino mórbido e sem leis.

Aparentemente com a intenção de “mudar o mundo da música”, o produtor resolveu montar uma banda só de garotas. “A primeira”, errava propositalmente, apagando da história a ótima Fanny, surgida seis anos antes na mesma Los Angeles em que vivia. Suas intenções sádicas, no entanto, já podiam ser percebidas quando a tal banda precisava ser de garotas bonitas com imagem sedutora, sexualizada, no palco e nas fotos promocionais.

Todas as qualidades das Runaways vieram exclusivamente do talento das garotas, mais a letrista Kari Krome, recrutada por Fowley e uma de suas maiores vítimas. O disco de estreia da banda, lançado um ano depois (1976) pela Mercury Records, é recheado de clássicos das pistas de rock alternativo, como Cherry Bomb e Rock’n’Roll. Ajudou a influenciar o movimento Riot Grrrl, anos mais tarde.

Mas na época em que foi lançado, reforçou o machismo estrutural do show business, incluindo a imprensa: a imagem das integrantes importava muito mais do que a música, a ponto de serem recebidas com garrafas e cusparadas pelo público durante seus primeiros shows. “Rock é coisa de homem”. Mulher, só servia para ser groupie, as fãs enlouquecidas que invadiam quartos de hotéis. O grupo explodiu, no entanto, no Japão e na Europa, antes de ser notado nos Estados Unidos. Só que quem precisava de uma pessoa para defender a sua carreira (para isso serve um empresário) tinha na função alguém que seria seu maior algoz.

Tudo o que dizia respeito ao futuro das Runaways passava pelo crivo de um louco. E dá-lhe fotos sensuais, clipes sensuais, e tudo o que Fowley via como “interessante” vindo de uma artista mulher. No olho do furacão, garotas que buscavam na ideologia do rock’n’roll uma rota de fuga da complicada vida familiar conservadora, encontraram uma masmorra no lugar do paraíso. Micki Steele, que mais tarde formaria a icônica The Bangles, foi demitida porque disse “não” às investidas sexuais do empresário.

Kari Krome, que fugiu de casa e tinha uma família “tão pobre que não tinha sequer um telefone de contato”, não teve a mesma força. Em 1975, a letrista tinha 14 anos de idade. Só foi se dar conta do quanto foi abusada décadas depois, quando processou o ex-patrão.

Em dois anos de vida, The Runaways já havia gravado três discos, tocado com muitos de seus ídolos, viajado pelo mundo e trocado diversas vezes de integrantes. Conviver com Fowley era insuportável. As remanescentes Lita Ford e Joan Jett se ligaram do escroto problema com que tinham de lidar diariamente e conseguiram se desvenciliar de Fowler em 1977. Como vingança, o produtor levou consigo o contrato com a Mercury. O estrago, porém já estava feito. Viver no mundo do rock’n’roll não era tão divertido quanto parecia. Em abril de 1979, após um tanto a mais de trocas de integrantes, produtores e empresários, a banda finalmente anunciou seu fim.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.