Tão perto, tão longe
A DJ Mag deu um rolê por quatro festas de música eletrônica que acontecem a várias dezenas de quilômetros do centro
de São Paulo e constatou que o fervo clubber em baladas pouco ? ou nada ? conhecidas também é forte.
Por Claudia Assef e Fabio Mergulhão
Uma garota magricela, de cabelos cacheados, típica morena jambo, arranca gritos do público antes mesmo de seu nome ser anunciado pelo MC da festa. A multidão, que agora se acotovela em frente ao palco, pula e grita o nome da menina, enquanto das caixas de som sai a frase, ?agora, com vocês, a DJ Pedriiiiita!!?. O povo vai à loucura e começa uma dança desesperada na pista, como se aquela fosse a última festa de duas vidas. Um coro de meninos grudados nas caixas de som não deixa ninguém esquecer que a DJ ?Pedrita!! Pedrita!! Pedrita!!? é muito querida por aquelas bandas.
Das mãozinhas delicadas da DJ saem mixagens longas e precisas de hardtecno da melhor qualidade. O apelido é autoexplicativo: só falta o ossinho na cabeça pra ela ser idêntica à filha do Fred Flintstone.
Meu relógio marca duas e pouco da manhã. É madrugada de sábado e à minha volta uma garotada, na faixa dos 19 anos, no máximo, faz com que eu me sinta uma tiazinha. Fora que estou usando calça jeans e camiseta, enquanto a tchurma local arrasa numa cyber-montação que me faz voltar no tempo até 1997. Eu e o fotógrafo Fábio Mergulhão estamos com um sorriso abobalhado no rosto. Nos sentimos especiais por estar aqui. Afinal, depois de anos freqüentando os mesmos lugares na noite, vendo sempre os mesmos rostos, uma desculpa oficial pra sair da mesmice (esta matéria) ajuda a renovar o sangue, reaviva a curiosidade e rejuvenesce (isto é, só internamente…).
Da Bela Vista, centro de São Paulo, até o número 8.559 da avenida São Miguel, no bairro de São Miguel Paulista, havíamos rodado mais de 35 quilômetros. Só pra ver, fotografar e nos divertir na festa Núcleo, que acontece no bairro há cerca de um ano, organizada pelo DJ Tutu. Naquela noite de meados de agosto, mais de 500 pessoas dançavam nas duas pistas da Núcleo: a maior, só com DJs meninas, transitava entre o hardtecno e o drum?n?bass; na pista menor, três DJs cujos nomes eu nunca tinha ouvido falar (Dinho, Sergio Monteiro e Daniel Capone), tocavam electro do bom.
Para chegar até ali havíamos seguido à risca as indicações do DJ Tutu: Radial Leste [que faz a ligação da zona leste ao centro da capital] até o final, depois mais duas avenidas gigantes até o fim, direita no supermercado D?Avó e pronto. Quando chegamos, um pouco depois da uma da manhã, a rua estava deserta. Nenhum carro ou movimentação na porta. Estacionamento, então, nem pensar. Descolamos um posto de gasolina próximo e acertamos uma cervejinha com o frentista, pra que pudéssemos parar o carro ali.
Nunca, em mais de 15 anos de noite, eu tinha visto o que presenciei ali: na parte interna da Antigo Terraço, nome da casa noturna onde rola a festa, uma multidão de gente parecia ter surgido de dentro de uma cartola mágica. Da frente do lugar deserto até lá dentro… Onde estariam carros, filas, hostess? ?A galera toda chega antes da meia-noite, porque até esse horário mulher entra VIP e homem paga R$ 5?, diz o DJ Tutu. Nunca vi um desconto funcionar tão bem pra arrastar o povo cedo pra boate.
Toda montada, com pompons no cabelo e segurando um cachorrinho de pelúcia, a estudante Gisele Soares, 17, ou Gi, como ela prefere ser chamada, me conta que ?já é clubber há um ano?. Tagarela, ela diz que resolveu mudar de tribo ? era roqueira ? por causa da união do pessoal da música eletrônica. Ela é fã do DJ Marky, ama drum?n?bass, mas isso não a impede de gostar também de hardtecno, psytrance e tribal. É a Gi que desvenda o ?mistério? da ausência de carros na porta do clube. ?Ah, aqui todo mundo sai de rolê de trem. Eu vim com um pessoal lá de Ferraz de Vasconcelos?. Ou seja, rodou mais de 20 quilômetros para chegar até o ?rolê?, palavra que é usada com freqüência no lugar de balada ou festa.
Quem freqüenta a Núcleo pode até ter o dinheirinho contado no bolso, mas não se diverte menos por causa disso. Nossa amiga Gi conta que a mãe lhe dá R$ 10 pra sair à noite. ?A ?conduça? custa uns R$ 5, e o resto eu uso pra consumir na festa?, diz a sorridente estudante do 3º ano do ensino médio, que quer fazer faculdade de webdesign. ?Aqui todo mundo se ajuda. Até o começo do ano eu trabalhava no Mc Donald?s e ganhava uma graninha (R$ 250 por mês). Quando os amigos não tinham como pagar o rolê eu fazia questão de bancar?, conta. Agora que estuda pra entrar na faculdade, Gi conta com a ajuda da mãe. ?Ela entende que eu sou clubber e sabe que aqui não tem confusão?, conta, antes de sair correndo para ouvir a DJ Alessandra Soares, da turma do DJ Marky, tocar na pista grande.
Roda de Drum?n?nbass
“Você sabe correr??, me pergunta um menino que assiste ao meu lado outros garotos dançando numa espécie de roda de break ?que de break mesmo tem muito pouco. ?Correr… tipo como??, respondo, já sabendo que não havia entendido a pergunta. ?Ah, correr… É o passo mais básico pra quem quer entrar na roda?, ele me ensina. Desde os tempos do finado Sound Factory, clube que nos anos 90 fez a Penha ferver com drum?n?bass e hardcore, há um código de dança específico para o dêbê. De longe parece uma roda de break, mas não há muitos passos emprestados do hip hop. Há, sim, o mesmo intuito de batalha, onde os dançarinos se exibem sempre querendo derrotar uns aos outros, fazendo passos mais e mais elaborados a cada rodada. Mas a influência do hip hop pára por aí. Na dança, em si, há elementos de vogue (imortalizada em videoclipe pela Madonna), funk carioca e até polka. E tem umas ?paradinhas?, meio afeminadas, mas que em nada diminuem a macheza dos manos. ?Isso tudo é só onda?, diz o meu instrutor.
Ainda no quesito novidades, aprendo com Cleitão Zóio, promoter de festas da região, uma técnica para fazer o drinque durar mais tempo na noite. É só misturar dois líquidos (um alcoólico, outro não) numa garrafinha d?água de 500 ml e fazer um furinho embaixo. Daí é só tomar dando esguichadas. Por que ninguém pensou nisso antes? Detalhe: no cardápio do bar, as opções começam em R$ 1,50 (batida de vários sabores) e vão até R$ 10 (energético). A cerca de 20 quilômetros de onde Zóio tomava seu drinque-esguicho, os freqüentadores da festa Urbano?s Friends, em Guarulhos, também gostam de drinques especiais. Mas, aqui, os hits são energético com vodca e cerveja na garrafa de 600 ml.
“Música eletrônica aqui é meio modinha?, diz o promoter Mario Simões, 29, que faz festas de electro e psytrance no Urbano Bar há cerca de quatro meses. As festas eletrônicas acontecem sempre às quintas-feiras e é normal formar fila na porta. ?Estamos investindo num line-up legal. Já tocaram aqui vários DJs de São Paulo, como o Julião e o Miguel Fusco, e até um gringo, o Tom Keller?, lista. O investimento em música eletrônica é meio recente. No passado, ele já fez noites de reggae e até de axé. Hoje, além das noites de quinta-feira, o promoter também faz festas ?private? ? pequenas raves fechadas ? na região.
Na pista do Urbano, meninas cocotinhas e garotos sarados dançam ao som do DJ Feio, uma lenda-viva da cena de raves no Brasil ? ele é fundador da XXXperience ao lado de Rica Amaral. No telão, imagens do DJ Tiësto se revezam com cenas de algum DVD da XXXperience – ver as imagens do DJ Feio sendo projetadas enquanto o próprio toca na cabine é, no mínimo, engraçado. Na chegada, pudemos escolher entre vários estacionamentos próximos. Todos cobravam R$ 8 e estavam lotados. Na porta, uma fila de algumas poucas meninas e uns 20 meninos, quase todos usando o semi-uniforme da festa: corrente grossa no pescoço, camiseta justa ?de marca? e calça jeans com lavagem. Para elas, blusinha frente única compondo com outras peças ?sexies?.
A freqüentadora Andrea Kustra, 23, diz que ?adora o barzinho?. ?Venho por causa do DJ Onix?, garante a moça, que mora na Zona Norte, mas vai para Guarulhos de carona com alguns amigos. Ela, que começou a ouvir música eletrônica ?mais ou menos em abril deste ano?, adora o clima do Urbano, porque é tranqüilo e tem gente bonita.
Malhódromo
Pouco mais de 50 quilômetros separam a pista do Urbano Bar, em Guarulhos, das duas pistas do clube Deep, em Mogi das Cruzes, mas há vários pontos em comum. O primeiro é que o poder aquisitivo é bem parecido: bastou uma olhada no estacionamento para concluir que tanto nesta cidade universitária a algumas dezenas de quilômetros do mar quanto no município da grande São Paulo que ficou famoso pelo aeroporto internacional, circula uma garotada de classe média, com grana o bastante pra ter carro. Nada de importados, mas uma frota de Gols e Pálios de não mais que cinco anos de uso.
O clube é estrategicamente localizado na estrada que dá acesso a Mogi das Cruzes e fica próximo o bastante de Poá e Arujá para ter boa parte de sua clientela ?importada? destas cidades. De longe, a fachada impressiona, além do tamanho do estacionamento, que, assim como no Urbano, custa R$ 8. Lá dentro, o logo estampado nas camisetas do staff lembra muito o do D-Edge. Não é só o logo, o sound system da pista de música eletrônica ? a outra pista é de pop rock – não deixa muito a dever para o equipamento do clube da Barra Funda. Quando chegamos, a potência do som realçava nuances do bom set de electro house do DJ Scooby, promoter das festas Deep Live Music, que rolam às sextas-feiras.
Porém, a pista parecia um ponto de encontro de algum disk-namoro ? não só por causa das pessoas se beijando por todos os lados. O que mais saltou aos olhos foram casais dançando agarradinhos, como se estivessem num bailinho de lentas. A festa, que atrai em média 600 pessoas por semana, foca no electro, psytrance e minimal, trinca que tem sido cada vez mais vista por aí. Porém, por mais que o Scooby tentasse me convencer de que o povo estava lá pela música, conforme os minutos passavam, a pista ia mais e mais se parecendo com um malhódromo. ?Acho que é por causa da música, o pessoal do electro dança assim, mais ?rebolation??, diz Scooby. Tudo bem o povo se beijar adoidado. Não tenho nada contra. Mas o tempo fechou, pelo menos pra nós, quando entrou o DJ convidado, tocando um hard house datado pra caramba. Me senti em Londres, em 1994. Mas, espera, eu não vivi em Londres em 94. OK, hora de ir pra casa.
Ah, se você planeja uma visita ao Deep, atente para o aviso que está no site do clube: ?Proibido (sic) a entrada de pessoas utilizando boné, toca, calça de moletom e chinelos?.
O menor clube do mundo
Quando o DJ Atum colocou no CD-J a música ?Heater?, polêmica faixa do produtor Samim, que traz um sample de sanfona no meio, a pista do Cassimira, clube que fica dentro da Cohab de Carapicuíba, veio abaixo. As seis pessoas que estavam dançando simplesmente foram à loucura com a música, que mistura minimal tecno com forró sem medo de ser feliz.
Medindo aproximadamente 12 metros quadrados (2m30 por 6m), no Cassimira, a expressão ?meia dúzia de gatos pingados? não existe. Ali, seis pessoas são exatamente a conta pra lotar a pista ? espremendo cabem dez. O clube foi montado usando duas garagens que ficam bem embaixo do conjunto habitacional. A idéia de criar um comércio utilizando o espaço que deveria servir pra guardar um carro (pequeno) não é novidade por ali. Nas cohabs, grande parte das garagens costuma se transformar em oportunidade para ganhar dinheiro. Há quem abra salão de cabeleireiro, mercearia, padaria, pizzaria, lan house, locadora de vídeo. Então por que não um pequeno clube?
Foi o que pensaram os amigos Marcelo Amaral e Fly Garcia. Moradores da Cohab e apaixonados por música eletrônica desde moleques, eles pensaram em criar um local que ao mesmo tempo funcionasse como ganha-pão, diversão e centro cultural. Em janeiro de 2008 eles completam um ano de funcionamento e pretendem comemorar com um set especial do maior ídolo dos dois, o DJ Mau Mau. ?Já o chamei num canto e convidei. Não vou sossegar até conseguir trazê-lo?, diz o determinado Fly, que também é DJ. ?Chamando de canto?, ele já conseguiu trazer vários nomes importantes da cena eletrônica. Além de Atum, já citado, já passaram pela bem montada cabine do Cassimira George Actv, Julião, Mimi, Renato Lopes, Mr. Gil, Paula, Gláucia ++, Camilo Rocha, entre outros. ?Isso aqui só se tornou realidade porque todo mundo da Cohab colabora?, diz Marcelo Amaral.
E é verdade. Nos fins de semana, quando o mini-clube funciona, é preciso contar com a gentileza dos vizinhos donos das garagens vizinhas, pois como o espaço interno do Cassimira é minúsculo, o jeito é espalhar as mesas pela calçada. ?Sempre consultamos os vizinhos, que nunca se estressam?, diz Fly. Coisas corriqueiras para qualquer clube ou bar podem se tornar um grande tormento quando se está a alguns quilômetros do supermercado mais próximo. No domingo em que DJ MAG visitou o Cassimira faltou gelo no bar. Os donos correram até a padaria, que fica a um quarteirão dali, mas não tiveram sorte: o gelo tinha acabado. Pegar um carro e dirigir até a rodovia Castelo Branco para comprar? Pra quê, quando se tem vizinhos solidários? ?Pedi pra umas meninas irem buscar de casa em casa?, contou Fly. Em poucos minutos, ele estava com duas sacolas cheias de gelo caseiro, destes feitos em forminhas, no freezer do bar.
Apesar de pequeno, o Cassimira é rico em detalhes de decoração. ?Vou ligar a iluminação do clube?, brinca Fly antes de acender as luzinhas em formato de abacaxi e as ?luminárias?, feitas com ralador de queijo. Ao lado de onde foram montadas a cabine de som e a micropistinha, fica o bar, instalado numa segunda garagem. Ali, os sócios montaram uma minibiblioteca, onde não faltam revistas de música e de cultura em geral, além de um exemplar do dia da Folha de S.Paulo. Ah, vale dizer que agora vinte exemplares da primeira edição da DJ MAG fazem parte do acervo.
Além da leitura, quem freqüenta o Cassimira também pode adquirir CDs de música eletrônica a preço de custo (R$ 15) graças a uma parceria firmada com o selo Urbr, que tem no catálogo discos legais, como o CD mixado da festa Sunday Away e o álbum The Cloud Making Machine, de Laurent Garnier. Como mostruário, uma pequena vitrine, doação do salão de cabeleireiros vizinho. ?Aqui todo mundo se ajuda mesmo?, explica Fly.
Do bar saem algumas especialidades como a porção de ?batatas de casamento?, delicioso legume em conserva, feito pela mãe de Marcelo, e o drinque Gabriela, uma mistura de cravo, canela, limão, mel e pinga. A técnica de enfermagem Aline Cristina Fagundes, 21, é fã da bebida. ?Sou apaixonada pela Gabriela, mas venho aqui por causa da música eletrônica de primeira?, diz a eclética moça, que também curte forró.
Pesquisa musical é algo que é realmente levado a sério pela turma do Cassimira. Além dos DJs famosos que dão pinta por lá, um de seus residentes, Jairo Vendramini, o Jairinho, é uma verdadeira enciclopédia ambulante de música eletrônica. O cara é o único moderador e editor brasileiro do site Discogs, a maior base de dados do planeta quando se fala em e-music. Ele está entre as vinte pessoas que mais alimentam um site no mundo. De residentes, aliás, o Cassimira não está fraco. Outro talento que sempre toca por lá é o DJ Robson, um dos maiores entendedores de Detroit tecno do país.
Depois de rodar quase 150 quilômetros atrás de festas em cantinhos escondidos da grande São Paulo, percebemos as coisas incríveis que deixamos de ver por preguiça ou pela simples ignorância dos fatos. Eu e o Mergulhão descobrimos uma pontinha de um iceberg que só pode ser imenso e fizemos novos amigos. É muito bom ver além do umbigo.
PS – Esta matéria foi publicada na revista DJ Mag que chegou esta semana às bancas. Na versão impresa, há uma penca de fotos imperdíveis do mestre Mergulhão.