SP na Rua consolida seu papel de resistência underground em tempos difíceis! Até bomba rolou

Chico Cornejo
Por Chico Cornejo

Passear pelo Centro de São Paulo, para mim, é sempre uma experiência psicogeográfica intensa, porque é repleta de lembranças de infância e adolescência. Desde que saía de mãos dadas com minha mãe e a acompanhava no trabalho de visitar clientes dos artefatos produzidos pelo meu pai, a maioria livrarias e lojas de presentes que se concentravam na região que vai da Praça da República até o largo de São Francisco, ou anos depois, quando passava tardes inteiras nas galerias das ruas 7 de Abril, 24 de Maio, José Bonifácio, Andradas, Barão de Itapetininga e Dom José Barros atrás de discos de vinil para saciar meus desejos musicais, perambular por aquelas ruas sempre me foi algo precioso e revigorante.

Constantemente a região reunia uma visão muito reveladora e franca do melhor que a cidade podia ser e do pior que conseguia se tornar: diversidade, pujança, riqueza, miséria, estresse e violência. Tudo ao mesmo tempo, concentrado num núcleo multicolorido e fétido no qual odores e pendores se misturavam de modo indiscriminado. Se a Amazônia é o pulmão do mundo, o Centro de São Paulo é o fígado do Brasil.

O Centro de São Paulo cumprindo uma de suas principais funções: reunir gente de todas as classes

Então ao vê-lo apinhado de gente e preenchido por música por ocasião da sexta edição do SP na Rua foi um majestoso lembrete do que faz desse lugar um dos mais promissores e redentores da cidade e uma reiteração de sua mais antiga e profunda vocação como um local de comunhão cultural. Tinha de tudo em todos os quesitos e por todos os cantos, compondo uma rica e vívida demonstração do potencial congregador e democrático da dança, da celebração na pista que pode nos unir quando toda a realidade externa se fratura e nos separa.

Chegando ao Vale do Anhangabaú, ponto focal de tantas mudanças e promessas que persiste em ser uma tela branca para uma miríade de possibilidades de vivência e convivência, mas raramente se tornando terreno efetivo para elas, dava para ver muito do que esperava qualquer um que se dispôs a prestigiar o evento. Uma faixa ininterrupta de modalidades da música eletrônica apresentava uma linha temporal de muito do que fez e faz sua história: Dub, Dancehall, Techno, Pancadão, Acid, Trance, Dubstep… tudo pulsando – alguns de maneira mais precisa e menos distorcida que outros – pelos e para os corpos ali presentes.

Techno, dub, dancehall, house para as massas, como deveria ser sempre

Corpos, inúmeros e diversos, mas predominantemente pretos, vigorosamente em movimento, surpreendentemente femininos, indiscutivelmente felizes e inexoravelmente livres. Este SP na Rua foi um momento de anamnese necessária de tudo que devemos aos ritmos e povos da diáspora que são majoritariamente alheados das nossas pistas. E isto não se limitava aos palcos que se sustentavam em sonoridades mais diretamente tidas como “negras” (afinal, qual não é ali, certo?), como os devotados a tantas outras matizes das técnicas auras dançantes.

Outro ponto especial foram os espaços dedicados a instalações artísticas e que ampliaram o leque de linguagens que nos auxiliaram a usufruir ainda mais desse rolê. Becos, passagens, escadarias, vielas e recantos repletos não apenas de luzes e cores, mas também de pessoas e humores.

Destaques, houve muitos, cada um mais glorioso que o outro, desde a militância esclarecedora do Sistema Negro até o desbunde enriquecedor da Selvagem, passando por um espectro gigantesco que é justamente a essência de São Paulo, na rua, à noite. E o que mais funcionou, na real, foram os mash-ups de conceitos e coletivos, essas junções de Marsha e Mamba, Vampire Haus e Bandida, Capslock e House of Divas, Metanol FM e Caldo, Fresh! e Gueto por Gueto, Tropicaos e Quack!, Venga! Venga! e Free Beats, Námíbià e Batekoo – que fizeram tudo ainda mais inclusivo e deram novo alento para vivermos em tempos intolerantes.

Helipa LGBT e Batekoo fizeram um dos palcos mais animados do SP na Rua 2018

Ainda assim, era impossível não perceber a força da música caribenha por todo o pedaço próximo à Praça da Sé que se tornou uma vibrante Little Kingston, através dos esforços de sound systems consagrados na paisagem sonora da cidade, como o Dubversão e também das valorosas minas de outros coletivos mais jovens como Feminine Hi-Fi e Ruído Rosa. Graves, brisa e alegria eram disseminados pelos túneis formados por esses edifícios que compõem uma memória da cidade de outrora, mas que, devido à truculência policial que eclodiu em certo momento da madrugada, acabou por remeter a tempos muito mais atuais, infelizmente. Em certo momento da madrugada, policiais adentraram sem pedir licença com bombas e até agora ninguém entendeu o motivo, conforme mostra este vídeo gravado no momento da visita inesperada.

Mas, isso não tira o encanto de um evento que, ao menos para mim, serviu para reforçar minhas esperanças e revigorar minha fé nesta metrópole que é parte de mim tanto quanto sou parte dela. E também ajudou-me a relembrar o quanto esse cadinho de musicalidades e etnias é o laço mais fundamental que nos une e que nos faz sempre almejar sermos algo de melhor, para nós e para todos.

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