
‘South Park’ ressurge como arma política em guerra entre Paramount e Trump
Episódio inédito marca retorno da série e revela bastidores de um conflito entre mídia e governo dos EUA
Desenho animado, sátira, comédia? Não. A volta de South Park, ridicularizando Donald Trump de todas as formas possíveis dois anos após lançar seu último episódio inédito, envolve um jogo de xadrez digno dos grandes impérios. A batalha foi travada nos tribunais estadunidenses, até que uma bomba ácida foi encontrada pelos executivos do canal de streaming Paramount+ e jogada na Casa Branca, fabricada por dois dos cartunistas mais famosos (e agora, ricos) do planeta.

Além de criadores geniais, Trey Parker e Matt Stone (fundadores da Park County, empresa que administra seu desenho animado) provaram ser negociantes visionários. A dupla jamais topou abrir mão de qualquer dinheiro vindo de fora, via investidores, nem aceitar “sugestões” no que diz respeito à condução do roteiro de seus episódios. E quando a proposta não era boa, simplesmente viravam as costas.
Tanto que até o primeiro semestre deste ano, ninguém sabia se a série iria continuar sendo produzida. Para assistir às 26 temporadas anteriores, era preciso garimpar em diferentes serviços de streaming ou TV a cabo, dependendo do país em que você morasse. Ainda assim, até junho de 2025, havia a possibilidade da animação ser transmitida somente dentro dos Estados Unidos, já que os canais de streaming mundiais e a Park County não estavam se entendendo.
Em paralelo, o grupo Paramount enfrentava a dura briga contra Donald Trump e a máquina governamental, agora em suas mãos. O atual presidente taxador processou a empresa em outubro de 2024 porque um episódio do programa de notícias 60 Minutes (transmitido pela subsidiária, a CBS), com Donald e sua então concorrente à presidência dos EUA, teria sido manipulado para favorecer Kamala Harris. E embora o processo não fizesse nenhum sentido segundo os próprios consultores jurídicos, o grupo decidiu propor um acordo, pagando 16 milhões de dólares com a condição de encerrar o caso, em junho.

No entanto, se a ação era absurda, por que admitir a culpa, colocar o rabo entre as pernas e pagar uma fortuna? Porque o presidente utilizou-se de outra arma envolvendo o governo estadunidense: processou, como pessoa física, a Paramount no mesmo momento em que a empresa tentava uma fusão com a produtora de cinema e TV californiana Skydance Media. A fusão precisaria ser aprovada pela agência federal FCC, cujos auditores têm como patrão atualmente… Donald Trump. A pressão silenciosa era clara. Enquanto estivessem brigando, o presidente poderia interferir radicalmente na fusão.
Quando o anúncio do acordo foi divulgado pela Paramount, Trump considerou publicamente (via Twitter, claro) sua vitória como “histórica”, e correu para finalizar a autorização da fusão, que para ele significa outra conquista: David Ellison, presidente da Skydance, é filho de um de seus grandes aliados, Larry Ellison. Mal sabia ele que estava prestes a tomar uma rasteira que o deixaria nu em público (literalmente) em poucos dias.
Dia 25 de julho, a FCC aprovou a fusão entre duas empresas exigindo, a mando do político, que a Paramount se comprometesse a acabar com suas iniciativas de promoção à inclusão e à diversidade de gênero na empresa. Poucos dias antes, a Paramount+ anunciou que fechara um acordo recorde de 1,5 bilhão de dólares para ser a única responsável pela exibição de todas as 26 temporadas anteriores de South Park, mais as cinco futuras, a nível global.

Como já havia feito com Saddam Hussein, “South Park” coloca Trump na cama com o diabo. Imagem: Reprodução/X
No último domingo, 27, o grupo destilou seu prato da vingança. O episódio de estreia da nova temporada de South Park ridiculariza Donald Trump de uma forma inimaginável, apresentando-o nu no show e satirizando sua mania de conseguir o que quer através de processos judiciais malucos. Uma bomba gigantesca.
Nele, o desenho é interrompido para transmitir um “minuto de propaganda pró-Trump”, comercial com um sósia do presidente dos EUA subindo uma montanha sem camisa e mensagens de apoio, ironizando a sua fome judicial. Mas não para por aí. Donald é apresentado como “esposinha” de satanás, e ainda é exposto com um bingolin minúsculo — uma alusão ao símbolo máximo de potência masculina em um governo comandando por matchos. Jeffrey Epstein, claro, não fica de fora. O abusador aliado ao político (que está sendo acusado de participar de orgias na ilha particular do criminoso) é um dos personagens do roteiro.
Os fãs de South Park podem alegar que a sátira não é tão surpreendente assim, já que a série tirou muito sarro de outras figuras políticas e inúmeras celebridades no passado. No entanto, a tijolada veio através da Paramount, que acabara de “aceitar” os termos impostos pelo megalomaníaco presidente. Um golpe não imaginado, na fuça de um cara que tem obsessão pelo controle total sobre o que dizem sobre ele e seu governo.

Claro que o contra-ataque virá pesado. No calor da derrota midiática, ainda não se sabe como Trump pretende reverter o estrago. Mas vivemos para ver um grupo de crianças de um desenho animado dissolver o que restava da imagem de um dos homens mais poderosos do planeta.