Resenhas ou análises de eventos sempre foram uma categoria de artigo cuja finalidade me pareceu um tanto difícil de entender. Se, por um lado, todo produto cultural é passível e digno de ter uma glosa acerca de seus trunfos ou defeitos realizada por alguém que se julga um especialista, por outro, aquela parte mais fundamental da fruição, a experiência em si, foge a qualquer tipo de descrição. Portanto, esse exercício sempre me pareceu tão bem-intencionado quanto inerte.
Assim que este convite surgiu, levei em consideração o meu apreço pela banda, no caso a headliner do festival Soundhearts, Radiohead, desde seu surgimento, quando ajudou a reforçar meus ânimos em relação tanto a um formato artístico quanto a um gênero musical que, para mim, começava já a mostrar sinais de cansaço. Assim que ouvi The Bends, foi como se algo me desafiasse e consolasse ao mesmo tempo, já que o âmbito do rock britânico, com o qual sempre tive mais familiaridade, aparecia como um iníquo, interminável Fla x Flu entre duas bandas que, pessoalmente, eu achava inferiores a muitas outras que já estiveram no auge das preferências dos súditos da Rainha e daqueles que, como eu, encontravam ínfimas escolhas no mercado norte-americano ou francês para satisfazer seus gostos. Talvez um Flaming Lips ou Stereolab surgindo no mesmo momento como correlatos afeitos a comparação.
Mesmo assim, levando em conta também meu desdém com relação a esse formato de entretenimento que encontra muitas ressonâncias no tipo de idolatria que abomino, esse espetáculo era algo inédito e bastante aguardado por mim enquanto apreciador de um grupo que não apenas se manteve consistente em tudo que fez, criou, planejou e se intrometeu, mas também se reinventou de modo constante e raramente caiu na pior armadilha que a fama pode colocar no caminho de qualquer empreitada criativa: se tornar caricatura esmaecida ou exagerada de si mesmo. Afinal, tudo neles é e permaneceu original, das origens propriamente ditas, sendo que Oxford nem de longe é considerada um bastião musical da ilha, até seus usos de um vasto legado musical que vai da dodecafonia e da experimentação musical europeia até as mais obscuras influências da música africana, tudo que os distancia imensamente da vulgarização homogeneizante e alvejante que dá a toada do rock desde os anos 60.
Não tanto carregado de euforia, mas munido de uma segurança bisonha de que tudo naquele festival valeria os perrengues de sociabilidade forçada em meio a uma quantidade de pessoas com quem provavelmente teria muito pouco em comum e menos ainda a favor – uma decorrência esperada do tipo de contingente afetado que um produto musical mais refinado usualmente atrai nas periferias de seu mercado de consumo – comprei meu ingresso com um desconto que era oferecido como vantagem relativa para correntistas do banco que figurava como um dos apoiadores do evento.
Saber que iria ser realizado num dos mais novos e bem preparados espaços de evento da cidade foi outra forte motivação, além da opinião uníssona entre pessoas cujas preferências e parâmetros artísticos tenho na mais alta estima sobre o tipo de apresentação que me esperava. Mas, na verdade, o fato de que este festival em questão trouxesse um dos nomes centrais da recente renovação da música de vanguarda afro-americana como uma das atrações principais acabou selando meu destino definitivamente – no caso o Flying Lotus.
Parecia a coroação merecida, apoteótica, para um final de semana de refestelo para aqueles que, como eu, são afeitos a uma musicalidade mais esotérica, daquele tipo que exige um pouco mais de esforço para sua apreciação do que as facilidades da música popular com a qual Radiohead e FlyLo curiosamente encontraram certo apoio demandam. E, honestamente, até o momento em que Thom Yorke, Nigel Godrich e companhia subiram ao palco, foi realmente uma experiência prazerosa.
As bandas de abertura conseguiam perfazer uma bela amostragem de talento e arrojo da cena local, congregando diversidade suficiente para agradar a gregos e baianos, mas não o bastante para fazê-los aparecer, infelizmente. Em seguida, os graves que conformam grande parte de tudo que é tão sublime na música de Flying Lotus ressoavam pelo gramado do Allianz Parque com a liberdade e potência devidas, dando aquela dimensão cinética deliciosa nos ventres dos presentes, enquanto os visuais, que são outro elemento essencial de suas apresentações, encontravam nos telões a nitidez e o fulgor necessários para complementá-la com uma dimensão sinestésica capaz de tornar o uso de qualquer tipo de substância alteradora da percepção naquele contexto um exagero até perigoso.
Entretanto, o melhor e o pior da noite ainda estavam por vir, já que, como um frequentador cético e, por isso mesmo, cauteloso de shows desse porte, me mantive a uma distância segura da linha de frente, que normalmente é ocupada desde cedo pelos mais fervorosos seguidores dos ídolos que sobem ao palco – justamente o tipo de frequentador de shows pelo qual sinto um misto de pena e asco. Retornando ao lugar mais próximo da housemix – o ponto preferido pelos audiófilos e demais frequentadores chatos que tendem a curtir o tipo de sonoridade pelo qual a banda ficou célebre – e já com as necessidades fisiológicas básicas saciadas durante o intervalo, foi impossível não notar que aquilo que me parecia fruto da ansiedade para assistir à primeira atração gringa mais de perto não era bem isso. Ela era mais uma manifestação daquela invenção atroz que só organizadores de eventos culturais treinados para sobrepor a satisfação de marcas às de seus consumidores conseguiriam conceber: o chiqueirinho de frente ao palco colado no gargarejo.
Entendo tudo que criou esse interregno e que esse tipo de layout de público não é nada novo, possuindo uma existência e resistência no âmbito de concertos musicais bastante previsível num país em que praticamente todo tipo de acesso a bens culturais e privilégios sociais são pautados pelas mais vis e imediatas relações econômicas, assim como compreendo que a viabilidade desse tipo de evento é frágil a ponto de pedir para que muitas atrocidades sejam cometidas em nome da sua realização (a maioria delas envolvendo concessões favorecendo uma audiência composta por celebridades e a nata da jovem elite local), mas, neste caso, provavelmente provocada pela aparente inexperiência dos realizadores e acentuada pela presença e altura inexplicáveis daquela estrutura central, essa região nobre tanto tomou uma proporção ultrajante quanto assumiu uma posição revoltante em meio à visão reservada ao restante do público.
O deleite se deu, sem dúvida, sendo que o material musical que ali era colocado em todo seu esplendor improvisativo conseguiu conjurar o que há de essencial no que o Radiohead faz tão bem ao vivo: as intrincadas construções harmônicas carregadas pela virtuosidade dos músicos e pela dramática presença de palco do vocalista. Foi assim que favoritas do público como Pyramid Song, Bloom, No Surprises ou mesmo Weird Fishes/Arpeggi suscitaram as reações esperadas e foram executadas com um primor que perpassava a distribuição canhestra do P.A. e ajudava a esquecer a vacuidade dos elementos visuais que adornavam sem fazerem propriamente parte de um espetáculo potencialmente tão emocionante. Por outro lado, All I Need foi tão diluída por esses fatores que saber seu nome parecia um lembrete aviltante de como aquilo tudo estava aquém do que a banda e seus fãs merecem, assim como o título de Everything In Its Right Place ganhou conotações humorísticas ao sermos sujeitados a ouvi-la de uma forma tão dispersa que quase soou como outra faixa.
Em suma, foi a excelência de quem estava no palco e a riqueza de sua obra o que salvou esse festival que poderia ter sido não somente melhor, mas muito mais respeitoso com os dois pólos que fazem a magia de uma performance artística, qualquer que seja sua magnitude. Acho que fica a lição de que pouco sound e pouco heart dão nisso mesmo: sentimento sem sensação, catarse sem curtição, êxtase sem salvação. Tomara que tenham aprendido e que voltem com toda a valentia curatorial que exibiram nesta primeira edição munida de uma atenção com os aspectos estruturais que transformam um evento numa instituição.