Sly Stone Foto: Sly Stone Music/Reprodução

O som, a luta e o abismo de Sly Stone — “o Tim Maia dos EUA”

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Revolução sonora, pressão dos Panteras Negras, vício em cocaína e volta por cima marcaram a vida de Sylvester Stewart

James Brown inventou o funk, mas Sly Stone o aperfeiçoou.” Assim declararam os colegas do banco de dados online All Music, com precisão tamanha, que merece a citação. Entre os anos 60 e 70, fase de ouro do artista morto ontem (09), aos 82 anos, vítima da covid-19 (sim, ela ainda mata), o funk e o soul batiam cartão em suruba musical em que misturar era o lema.

Flertes com rock e psicodelia, por exemplo, eram bem-vindos, quando não esperados, em um novo álbum do gênero. E o grande Sylvester Stewart sabia fazer isso com diversão e leveza, sem abrir mão do posicionamento — tanto que a ele foi até mesmo entregue a coroa de um subgênero, chamado de “progressive soul”.

Stone era o bom e velho operário da música, o que lhe rendeu conhecimento para transmitir o novo nas canções que escrevia. Trabalhou em rádios, foi produtor musical e tocava uma porção de instrumentos. Nessa onda, adquiriu conhecimento musical, conhecimento técnico e ainda tinha a habilidade de garoto prodígio para executar em uma banda tudo o que sabia. Eis os três pés do banquinho Sly Stone, que o colocaram dentro da história da música. Não fosse o suficiente, o homem ainda conseguiu, antes de encampar seu projeto solo, tocar como músico contratado para boa parte da nata musical de seu país — entre eles Dionne Warwick, Righteous Brothers, Ronettes, Bobby Freeman, George & Teddy, Freddy Cannon, Marvin Gaye, Dick & Dee Dee, Jan & Dean e Gene Chandler.

Na hora de soltar a pipa, chamou os irmãos, juntou duas bandas que já estavam tocando nos arredores da Bay Area, na California e montou o Sly & the Family Stone. A caminhada foi serena até o lançamento seu primeiro grande hit, Dance To The Music, em 1968. Cinco anos depois, o grupo era tão reconhecido que Bob Marley abriu para os caras, quando excursionou nos Estados Unidos pela primeira vez.

Graças à sua música, Sly se tornou uma referência natural para a comunidade negra dos Estados Unidos em meio à luta pelos direitos civis. Movimento hippie, guerra do Vietnã, protestos por igualdade… Muita coisa acontecia no país ao mesmo tempo, e um cara com voz suficiente para chegar aos lares das famílias negras valia ouro. Os Panteras Negras se tocaram disso.

Tanto que a organização decidiu “convocar” Sly Stone para seu exército. Passou a fazer exigências diretas para o artista, como a demissão dos integrantes brancos da sua banda e a troca de seu empresário por alguém mais alinhado à ideologia dos Panteras Negras. Stone compreendia as demandas da sua comunidade e tentou levar um papo, ceder a uma ou outra exigência do grupo, até que se mudou para Los Angeles e se afundou na cocaína. Não dá para dizer que a pressão pública imposta pelos Panteras foi essencial para desestabilizar o artista e o levar para as drogas. Mas que ajudou, certamente. Para mostrar que sim, se importava, lançou um disco mais soturno e melancólico, There’s A Riot Going On, em 1971. As letras eram mais politizadas, mas ainda sem a crueza que os Panteras pediam.

O artista virou uma espécie de Tim Maia deles. Musicalmente errático, faltando em shows, tentando promover novamente a revolução puramente musical que havia protagonizado no começo da carreira. Tentou mais alguns álbuns, foi preso por porte de cocaína, fez participações especiais, e venceu a luta em 2007 quando, já recuperado, voltou a encantar no palco, fazendo com que todo mundo se lembrasse quem era Sly Stone.

Em 2011, lançou o I’m Back! Family & Friends. Curiosamente, “família” estava presente em todos os projetos do artista, o que sugere que nunca tenha realmente dissolvido a tristeza das desavenças com os irmãos, coincidentemente ou não, na mesma época da pressão dos Panteras Negras, quando sua gravadora, a Epic, também entrou na contenda, puxando a corda para o lado oposto e pedindo a Stone canções mais açucaradas para agradar ao público.

Com o distanciamento geográfico e temporal, Sly Stone nos deixa em um momento em que todos o colocavam no prateleira mais alta, responsável pela influência a inúmeros outros músicos de funk e soul — de Parliament Funkadelic a Michael Jackson e Bruno Mars. Por sorte, o gênio teve tempo para ser devidamente celebrado após a recuperação. Prêmios e homenagens pingaram como tempestade tropical. Uma das mais bacanas é seu álbum tributo, Different Strokes by Different Folks. Não é qualquer disco que reúne Steven Tyler, The Roots, Maroon 5, John Legend e Joss Stone, entre outros. Sua música seguirá sendo ouvida.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.