Seun Kuti Foto: Kola Oshalusi/Divulgação

O peso e a dança: como Seun Kuti transforma herança em resistência

Adriana Arakake
Por Adriana Arakake

Expoente do afrobeat, filho de Fela Kuti está em turnê pelo Brasil com a lendária Egypt 80

Quando você ouve Fela Kuti, os sopros em fúria, o baixo que marcha como prenúncio e a urgência política que não cabe num palco, entende que aquele som não era apenas música. Era território. Era sobrevivência. Décadas depois, foi o filho mais novo, Seun Kuti, quem retomou essa chama.

Nascido em Lagos, Nigéria, em 11 de janeiro de 1983, Oluseun Anikulapo Kuti cresceu dentro do epicentro do afrobeat. Quando criança, circulava pelos ensaios e palcos da Egypt 80, a banda que o pai havia formado depois da lendária Africa 70, um exército de sopros e percussões que redefiniu a música africana dos anos 1970. Aos nove anos, o filho já abria os shows. Aos 14, quando Fela Kuti morreu, herdou uma missão: impedir que aquele som virasse apenas memória. Desde então, lidera a Egypt 80, mantendo parte da formação original e o espírito combativo que atravessou décadas. A história não o escolheu por herança, o colocou à prova.

O primeiro álbum, Many Things (2008), saiu pelo selo Mr Bongo/Kalakuta Records e já mostrava que o filho não se contentaria em repetir fórmulas. Depois vieram From Africa With Fury: Rise (2011), produzido por Brian Eno e John Reynolds, e A Long Way to the Beginning (2014), com produção de Robert Glasper e participações de M1 (Dead Prez), Nneka e Blitz the Ambassador.

Em 2018, lançou Black Times pela Strut Records, um disco político e direto com Carlos Santana na faixa-título. O trabalho foi indicado ao Grammy Awards 2019 na categoria Melhor Álbum de World Music. Cada álbum é um capítulo de transição. O afrobeat segue com a mesma base — sopros extensos, grooves militantes, vocais em coro —, mas Seun vai inserindo funk, reggae, rap e uma pulsação global que mantém o gênero em rotação viva.

Em 2024, lança Heavier Yet (Lays the Crownless Head) pela Record Kicks, produzido por Lenny Kravitz e Sodi Marciszewer, o mesmo engenheiro de som de Fela nos anos 1980. O título, inspirado na máxima shakespeariana “heavy is the head that wears the crown” (algo como “pesada é a cabeça que sustenta uma coroa”) inverte o sentido tradicional: aqui, o peso não está na cabeça coroada, mas em quem vive sem coroa e mesmo assim carrega o mundo.

“Este disco é para a classe trabalhadora e para os pobres”, disse Seun à OkayAfrica. Gravado em Lagos, o álbum reafirma o compromisso com as bases. É afrobeat como ferramenta de luta, não como estética exportável. O som continua político, mas agora também filosófico: groove e consciência no mesmo compasso.

Seun segue vivendo em Lagos por escolha. Poderia ter se mudado para Londres, como muitos artistas africanos de sua geração, mas preferiu permanecer onde o afrobeat nasceu. É porta-voz do Movement of the People (MOP), partido político fundado por Fela Kuti, e presença constante em debates pan-africanistas. Participou dos protestos Occupy Nigeria, em 2012, contra o aumento dos combustíveis e a corrupção do governo. Fala de imperialismo, pobreza, racismo e independência. O palco é sua assembleia permanente. Quando canta, transforma a palavra em corpo e o corpo em ato político.

Agora, Seun Kuti & Egypt 80 desembarcam no Brasil para uma série de shows que incluem, no estado de São Paulo, Sesc Campinas (06/11), Sesc Pompeia (capital, 08/11 e 09/11), Sesc Bauru (12/11), Sesc Sorocaba (14/11) e Bourbon Street Music Club (capital, 16/11); além de Porto Alegre (GREZZ, 05/11). Nesta mesma tour, o músico já passou por Brasília (Infinu, 29/10), Rio de Janeiro (Kingston Club, 30/10), Belo Horizonte (Festival Chacoalha, 31/10), Florianópolis (Bar Buena Onda, 01/11) e Curitiba (Tork’n Roll, 02/11).

Não é apenas uma turnê. É um reencontro entre Lagos e a Lapa, entre o tambor africano e o batuque brasileiro. O afrobeat, afinal, sempre foi parte do mesmo sangue que corre aqui: irmão do maracatu, primo do jongo, cúmplice do samba e do funk. No Brasil, onde a música negra também é resistência, Kuti encontra terreno fértil e um público que entende que dançar pode ser um gesto de insurreição.

O afrobeat atravessou o Atlântico para se misturar às nossas ruas, mas não perdeu sua fúria. De certa forma, o que Seun faz hoje é o que artistas como o Bixiga 70, a Nomade Orquestra e a Abayomy Afrobeat Orchestra vêm fazendo há anos: provar que groove e consciência podem caminhar juntos, que corpo e política não se separam na pista. Enquanto isso, seu som reverbera além da Nigéria e influencia gerações inteiras, de Erykah Badu e Anderson .Paak a Beyoncé, que mergulharam nas mesmas raízes de Fela para criar seus próprios discursos de liberdade.

Mas há uma diferença essencial. Seun nunca saiu do lugar de onde veio. Continua gravando em Lagos, tocando com os mesmos músicos, bebendo da mesma fonte e soprando o mesmo sax que ouviu o pai tocar pela primeira vez. Ele não revisita o legado. Mantém-no vivo, cheio de sangue e nervo, com a mesma fúria, mas outro horizonte.

Quando sobe ao palco, o corpo é microfone, a banda é assembleia e o som é insurreição. E, se a coroa ainda pesa, ele aprendeu a carregá-la dançando.

Seun Kuti não é sombra de Fela. É o eco que se recusou a morrer. É o fogo que segue queimando em Lagos e, por algumas noites, vai iluminar também o nosso chão.

+ Participe do canal de WhatsApp do Music Non Stop para conferir todas as notícias em primeira mão e receber conteúdos exclusivos

+ Siga o Music Non Stop no Instagram para ficar atualizado sobre as novidades do mundo da música e da cultura

Adriana Arakake

Adriana Ararake é DJ e a especialista em jazz, soul e blues do Music Non Stop.