Sete Notas com Emma-Jean Thackray

Chico Cornejo
Por Chico Cornejo

É difícil encontrar alguém mais autêntica do que esta jovem inglesa, pois quando ela pôe seu fôlego para funcionar, seja para soprar seu instrumento favorito ou proferir palavras de uma incomum sabedoria e franqueza para sua idade, ela arrebata qualquer atenção. Emma-Jean Thackray é uma inglesa tão típica quanto qualquer outra inglesa de sua geração, o que não quer dizer muito se atentarmos à diversidade cultural que o cadinho imigratório britânico conseguiu abrigar em seu bojo.

Ela consegue imprimir sua forte e divertida personalidade em tudo que faz. E isso quer dizer uma batelada de atividades, pois se tem um adjetivo que pode definir sua atuação musical é ‘inquieta’. Desde programar um dos programas mais acolhedores da Worldwide FM do padin Gilles Peterson até dirigir uma turnê fabulosa com a London City Orchestra com uma eclética trupe de artistas, assim como vir a São Paulo para ser residente de um projeto que envolve o British Council e a PBR Foundation e poder colaborar com artistas locais.

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Parte dos frutíferos resultados dessa excursão podem ser conferidos no programa que ela gravou para a rádio local Na Manteiga no meio da semana, a outra pode ser apreciada neste sábado no Jazz nos Fundos, quando toca ao lado de um time bem tarimbado de colegas, entre eles M.Takara, Rodrigo Coelho AKA grassmass e Thiago Nassif. Ambos valem muito a pena fazerem parte do seu finde, assim como esta conversa enriquecedora na qual passamos pelas notas que são os rudimentos mais elementares do seu ofício e lista alguns tópicos essenciais da vida de qualquer artesão que, como ela, tem na música sua razão de existir e criar.

A é de atemporal. Este é um conceito que se encontra um tanto perdido em meio a nossa atual abundância musical. Você sente que ainda há lugar para faixas com esse poder gravitacional se destacarem?

Eu acho que ainda temos hinos, mas eu poderia chamá-los de “musicões”. Antigamente esses sucessos populares eram tão grandes porque o acesso a distintos tipos de música não era tão fácil quanto é agora. Nos dias de hoje cada cena esotérica tem seus próprios “musicões” que são celebrados ao invés de termos a letra de “Dancing Queen” incrustada na consciência coletiva apenas porque nos foi enfiada goela abaixo através da TV. Existe muito mais música por aí atualmente mas, para mim, parece que o material tem mais espaço para respirar do que, digamos, nos noventa, porque podemos encontrar nosso próprio caminho até aquilo que apreciamos. Mas naquela época, talvez eu não pudesse ouvir muita música de dentro do meu quarto decorado com tema das Spice Girls em tons de rosa bem fortes…

 

B é de busca. Quais são seus desejos mais profundos enquanto música, hoje e sempre, seja como trompetista, multi-instrumentista, amante do Jazz, compositora ou mulher num ambiente dominado por homens… o que a Emma-Jean mais almeja?

Eu só quero poder criar qualquer coisa que quiser. Estar num lugar em que possa deixar minhas ideias fluírem, dar essa arte ao mundo e viver uma vida feliz, saudável e repleta de amor, sem nenhuma preocupação se vou poder pagar minhas contas. Se quiser escrever para uma orquestra, compor uma trilha de filme, fazer turnê do outro lado do mundo, quero que tudo isso aconteça. Não quero putas ou dólares ou limousines ou banheiros de ouro, só não ter de costurar meias velhas ou chorar quando a conta de luz chega. Eu já estou fazendo um monte de coisas pelas quais sou muito grata, tipo trabalhar em São Paulo, tocar regularmente pela Europa, lançar música da qual tenho orgulho e espero que isto seja apenas o começo.

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C é de coordenação. Como você equilibra o trabalho nos palcos e no estúdio? Claro que pode ser exaustivo e, por vezes, até estressante, então você tem uma estratégia para suportar a vida dupla com a qual todo músico precisa viver?

Eu não apenas me apresento e produzo, eu também arranjo, orquestro, faço curadoria, toco como DJ, ensino, dirijo, faço trilhas e muito mais. É mais uma vida déctupla ou algo assim e ela consegue ser muito cansativa, especialmente porque eu tenho uma forte tendência a sobretrabalhar e o mundo tem uma tendência a subpagar… Eu faço por amor e porque é minha razão de existir, mas isso nem sempre paga as contas.

Mais que nunca eu penso sobre o bem-estar na música. Tenho coisas sendo preparadas que vão de encontro a isso e também me certifico de que estou me cuidando no dia a dia. Eu falho bastante nisso. Bastante! Pode ser bem fácil negligenciarmos a nós mesmos e nossa saúde interna quando o que criamos é dado a todos e vem do nosso interior. Eu realmente estou me esforçando para cuidar das minhas necessidades, mostrar para mim mesma tanto amor quanto tenho pela arte e pela criatividade, assim como pela música que regalo a todos.

 

D é de difusão. Como você vê o papel específico da radio ao auxiliar o público e os músicos a se encontrarem naquela mesma bagunça? A internet certamente acentuou esses processos e modificou muito do cenário, mas o básico parece permanecer o mesmo, não acha?

Radio é uma rota imensa de descoberta musical. Por exemplo, eu sempre confiei no gosto do Gilles Peterson e o show dele na BBC6 Music me apresentou inúmeros  artistas que hoje em dia adoro. Tomara que agora com meu próprio show na Worlwide FM, as pessoas possam confiar em mim para apontar-lhes na direção de coisas novas. Ouvintes depositando confiança nas preferência de um apresentador ou de uma estação é de fato algo poderoso e não acho que vá sumir. Agora todos têm o poder de transmitir seus gostos e pensamentos e isso pode levar a uma bela quantidade de ruído de baixa qualidade, mas também pode tornar a indústria mais democrática e interessante pois nem todos nós dependemos das mesmas rádios para  exibir nosso trabalho ou para mostrar o que deve ser ouvido.

Playlists em streaming também se tornaram um tipo de rádio! Elas são essenciais para se manter uma carreira sustentável como artista e sou muito grata pelo apoio que venho tendo do Spotify, por exemplo, por terem me tornado parte das playlists curadas deles. Surgiram uns dados bem loucos sobre mais jovens do que nunca ouvindo Jazz no Reino Unido (o que tem tudo a ver com a música nova que viemos fazendo ressoar entre eles) porque eles encontraram seu rumo até lá via Spotify.

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E é de experiência. Tanto quanto possa ser considerada um tipo de recém-chegada, você é parte de uma geração mais ampla de músicos que deram novo alento ao Jazz britânico e têm sido bem-sucedidos nesta tarefa pela última década. Qual seu lugar dentro desse panorama e dele na sua carreira?

O Jazz britânico é uma coisa muito especial em si mesma, distante dos Estados Unidos e do restante da Europa. Particularmente em Londres tem tanta gente de todas as partes do mundo, tantas crianças cujas vidas foram enriquecidas pelas diferentes culturas e tradições musicais e acho que é por isso que todos estão tão empolgados com o que estamos fazendo. Por exemplo, adolescentes nigeriano-britânicos podem ouvir Ezra Collective e a música toca neles e em  suas próprias histórias de vida porque eles ouvem os ecos da música que seus parentes tocavam em sua memórias de infância, mas também algo novo, fresco e forte. Isso os atrai porque fala com eles de uma forma que música nenhuma conseguiu antes.

Muitos de nós na cena britânica também tocamos como DJs,além de fazer música, então sempre estamos pensando na pista, em convidar as pessoas a experimentarem a improvisação através do groove e do movimento. Há um momento e lugar para sentar em silêncio e ouvir num bar de Jazz, mas não é a única maneira. Nós também tocamos em clubs e testamos as concepções do que venham a ser o Jazz ou mesmo um gênero. Ele pode ser o que quisermos. A Grã-Bretanha me moldou porque não importa o quanto a imprensa mostre gente velha e aterrorizada votando pela intolerância e segregação, a Grã-Bretanha que conheço é cheia de cultura, comida e música de todos os cantos do globo e também repleta de amor.. Nós conseguimos contar nossas próprias histórias únicas através da música e a nação celebra essas narrativas.

 

F é de fraternidade. Músicos, especialmente nessa cena e desde sempre, são criaturas gregárias. Você me disser que sua vizinhança abriga muitos da sua espécie, mas isso necessariamente significa que rola um ambiente mais colaborativo ou vocês normalmente nem se veem devido aos calendários mutuamente conflituoso de turnê de cada um?

Muitos de nós que estudaram no Trinity College of Music em Greenwich moravam no sudeste de Londres e muitos músicos incríveis, os quais sou muito sortuda de serem meus amigos, moram apenas a algumas quadras de distância. E também tem muitos outros que não estudaram no Trinity. É uma dessas partes adoráveis de Londres, creio eu. (Pagável!!!) Acho que tem algo especial que corre pelas veias da cidade.

Existem lugares e noites fabulosos que têm facilitado as colaborações, na verdade, como o Total Refreshment Centre ou o Steeze – ambos infelizmente não estão mais abertos, ao menos não no mesmo formato. As pessoas precisam de um lar doce lar para retornarem depois de uma longa jornada na estrada, para florescerem e a cena de Londres não seria a mesma se não tivéssemos esses lares ali esperando por nós, para tocarmos nossa música.

 

G é de gêneros. Eles são algo que estrutura seu trabalho como seletora ou mesmo como música? Você vê alguma utilidade neles além daquela comercial? Eles conseguem sustentar a criatividade sem limitá-la?

Gênero é uma ferramenta útil para vender música, para separar os casulos nas lojas de discos e usá-los como sinalização. E só. Eu não presto atenção à ideia de gênero quando crio minha música ou quando toco e quando ajo como curadora eu ativa e conscientemente procuro destruir a ideia de gêneros. Eles não são apenas uma maneira de rotular as coisas esteticamente, mas também podem separar as pessoas num nível socioeconômico, assim como impor a ideia de que certas pessoas não pertencem a alguns lugares ou mesmo como admiradores de certos artistas. Eu fiz uma parceria com a London Symphony Orchestra em algumas casas e queria criar um ambiente no qual pessoas de todas origens pudessem experimentar a mesma música ao mesmo tempo. Eu vi um cara mais velho, branco e rico, falando com um adolescente negro e pobre enquanto uma criança estava fascinada com um rapper improvisando com um violinista. O público usual de música clássica levantou-se e começou a dançar, a audiência de Jazz e música eletrônica puderam curtir um evento num luxuoso prédio antigo ao qual previamente não pensavam “poder ter” acesso. Talvez aquela cara branco rico vá comprar um disco de Grime ou aquele jovem que antes se sentia excluído talvez vá assistir a um concerto.

Fodam-se os gêneros.

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