Sesc Jazz 2021 devolve o jazz a seus verdadeiros donos em uma celebração ao retorno da vida através dos shows
Sesc Jazz 2021 trouxe programação majoritariamente brasileira em 15 dias de shows que se tornaram, para os amantes da musica negra, uma grande celebração da vida após tempos pra lá de sombrios
Numa noite atipicamente fria de outubro (15), as luzes da plateia se apagam, as do palco acendem e as primeiras notas já arrepiam e despertam a emoção de quem não via um show ao vivo há quase dois anos. Amaro Freitas abriu esta edição do Sesc Jazz 2021 com acordes que não poderiam ser mais tocantes.
Nanã, composta pelo grande maestro Moacir Santos, numa versão muito particular do pianista em companhia dos músicos Hugo Medeiros (bateria), Laís Assis (viola 7 cordas), Lucas dos Prazeres (percussão), Henrique Albino (sax e flautas).
Amaro Freitas e sua celebração á ancestralidade
Amaro seguiu seu passeio por composições próprias cheias de alma, e outras versões, como a belíssima Eu e a Brisa, de Johnny Alf, além de canções de Dom Salvador e Milton Nascimento. O show inédito Ancestral Cumbe foi apresentado com emoção e técnica perfeita, cultuando ancestralidade. Além de músico excelente, Amaro Freitas é um doce de pessoa e me contou sobre sua relação com os artistas que escolheu para interpretar no palco. Disse que se sente uma extensão desses mestres e não haveria como falar sobre ancestralidade sem citar esses nomes.
Falamos especialmente de Johnny Alf, “um gênio que não teve o devido reconhecimento, como teve a branquitute brasileira”. Ancestral Cumbe foi uma grande homenagem, uma alegria imensa, depois desse tempo todo, assistir a um espetáculo lindo e de culto à ancestralidade.
Lendas tradicionais e novos rostos do jazz
Ancestralidade também foi tema e culto de vários outros artistas. É claro que os mais tradicionais foram maravilhosos, como sempre, Joyce com participação de João Donato, Hamilton de Holanda, Pau Brasil, Toninho Horta, Trio Curupira ou Hurtmold e o incrível percussionista Paulo Santos (ex Uakti), contaram com a participação especial de Jorge du Peixe e fizeram um show absolutamente delicioso.
Todos primorosos e comoventes, mas vou me ater especialmente aos novos nomes, porque achei este o ponto alto desta edição que escalou majoritariamente artistas brasileiros. Alguns já na estrada há algum tempo, mas que estão chegando ao conhecimento de um público maior agora e outros que iniciaram trabalhos recentemente.
Tive a honra de conversar com alguns dos participantes, além do já citado Amaro Freitas. O Radio Diaspora se apresentou no dia 22 de outubro, um dia depois do meu aniversário, com o show Ensemble Cachaça.
Que presente! O duo iniciou o show com improvisos em cima de um sampler do famoso discurso de Martin Luther King ” I have a dream”, um discurso de 50 anos que ainda, infelizmente, tem tanta relevância Na opinião dos músicos que se uniram em 2015, o debate sobre o racismo entrou em pauta, mas ainda temos um longo caminho a percorrer até alcançar o tão sonhado ideal de Luther King e de todos que compartilham da sua consciência.
Wagner Ramos (bateria e eletronicos) e Romulo Alexis (trompete, flautas, voz) misturam experimentalismo, improviso, free jazz e tiveram a companhia luxuosa de Lua Bernardo (baixo e flauta), Luiz Viola (teclas), Thayná Oliveira (cello) e Paola Ribeiro (baixo). “Não estamos aqui pra divertir vocês”, foram as palavras de Romulo no inicio do show. E realmente, num dado momento, eles tiram a plateia da zona de conforto.
Suas criações têm raiva, protesto, vigor e beleza singulares. “Os ruídos que gostamos de usar no nosso som, entendemos como um exorcismo mesmo, o grito na música negra tem essa função, da cura de traumas”
As minas no centro do palco
Dia 23. Vez de conversar e assistir um dos shows que eu mais esperava. O Jazz das Minas, um coletivo só de mulheres poderosas, maravilhosas, que se uniram em 2019 pra fazer um show em Angola e para nossa sorte, estavam nessa edição do Sesc Jazz.
Nosso papo foi delicioso. Deu pra sentir como elas são muito fãs umas das outras e esse clima descontraído transpirou para o show também.
Maíra Freitas (piano , voz e direção artítica), Samara Líbano (violão sete cordas), Mônica Ávila (sax e flauta), Flavia Belchior (bateria e percussão) e Sandra Nisseli (baixo) têm trajetórias bem diferentes no samba, no jazz, afrobeat, pop, MPB… e me contaram que não fazem um jazz purista.
“Nosso som é o afro-samba-jazz. Uma mistura grande de ritmos africanos e brasileiros, mas o jazz está ali, dentro do arranjo, do improviso. Não somos puristas porque nos utilizamos do dicionário musical de cada uma, que é muito rico e esse é o ponto mais positivo de nossa música”.
Com interpretações de grandes nomes como Moacir Santos, Nina Simone, Ivone Lara, Gilberto Gil e composições de Maíra, fizeram uma apresentação linda. A admiração mútua foi transformada em alegria e diversão, onde Maíra foi especialmente desenvolta, atrevida, dona do palco. Todas com uma presença incrível, muito prazeroso ver essas mulheres arrasando e tocando com tanta maestria.
Emoção e festa no encerramento de Aniel Y El Quilombo
O fechamento com o contrabaixista e arranjador cubano Aniel Someillan, que se apresentou em conjunto com os músicos Eduardo Espasande (Percussão), Rodrigo Digão (bateria), Oscar Aldama (Piano), Fabio Leal (Guitarra) e participação especial de Luedji Luna (voz), foi absoluto.
Aniel me contou que chegou no Brasil em 2014, gostou tanto que acabou ficando, quando entrou para a Orquestra Jovem Tom Jobim, se apaixonou de vez. O show foi composto de composições próprias, do disco de estreia, Quilombo, além clássicos cubanos e versões de canções brasileiras. O artista considera que o estudo de nossa música o ajudou muito em seu processo criativo, suas criações surgem geralmente a partir do ritmo e tem grande influência da rica harmonia encontrada na música brasileira, mas é uma mescla, uma bela mescla, com o jazz cubano, a salsa e o jazz tradicional. A interpretação, com assinatura bem própria de Aniel, da canção Canto de Xangô, de Baden Powell, foi um dos momentos mais emocionantes do show em um espetáculo que foi uma grande festa.
“Eu estava tão confortável que por alguns momentos passava pela minha cabeça que eu estava na sala da minha casa, tocando com amigos. A produção do Sesc foi tão perfeita, que nós só pensamos na música, foi muito natural”.
Deu pra sentir isso, e que bom que pudemos estar nessa “sala” pra apreciar essa apresentação encantadora. Aniel lança dia 05 de novembro o single do projeto novo Ilu Trio e um disco novo ano que vem, composto durante a pandemia.
Estes são só apenas alguns dos artistas que participaram. Esta edição do festival teve um movimento muito simbólico, na minha opinião, com a retomada desses homens e mulheres pretos apresentando sua música, em uníssono com o resgate e culto à ancestralidade, cada um à sua maneira. Com repertórios em busca da diversidade e da potência negra.
E mais, muito mais do Sesc Jazz 2021
O jazz “embranqueceu” bastante por um tempo e esse retorno para onde começou, a música negra, foi bem significativo. Ainda estiveram presentes o Conde Favela, de quem é público e notório que sou muito fã, com um espetáculo emocionante que misturou experimentação, free jazz, samba jazz, com paixão e a busca da expressão da música e cultura negra. Trouxeram músicas do álbum de estreia (Temas para Tempos de Guerra) e composições novas.
O Funmilayo Afrobeat Orquestra, criado por Stela Nesrine (voz e sax) e Larissa Oliveira (trompete), em homenagem à ativista nigeriana Funmilayo Anikulapo Kuti e formado por mulheres e pessoas LGBTQI+, também teve um espetáculo incrível que misturou samba, afrobeat, jazz e funk e foi poderosíssimo.
A cantora norte americana Alissa Sanders, que vive no Brasil há 23 anos, apresentou-se com emoção e muita beleza. O show contou com a participação de Anelis Assumpção. Bufo Borealis também fez um show lindo interpretando o disco de estreia Pupilas Horizontais e canções inéditas.
Foram muitos, muitos artistas incríveis, a emoção de voltar a assistir shows presenciais, a vibração da plateia, o encontro com pessoas tão notáveis depois desse tempo todo.
Ninguém que eu conheça saiu ileso deste período tão difícil, as pessoas adoeceram, ou deprimiram, ou tiveram problemas com grana, ou tudo isso junto, e muitos, infelizmente, se foram. Inclusive o grande mestre Letieres Leite, falecido durante o evento e merecidamente homenageado em diversos shows. Este contexto aliado à curadoria e produção impecáveis do festival, tornaram o Sesc Jazz 2021 especialmente essencial. Já estou ansiosa pelo próximo.