A partir de profissionalização e fiscalização rigorosas, mudanças buscam garantir mais proteção para o público em festas e shows
Em meados dos anos 90, em uma casa noturna badalada do interior de São Paulo, um rapaz se envolveu em uma briga, mais de uma vez, durante uma noite. Alcoolizado (e motorizado), qualquer argumentação era impossível. A segurança o levou para o escritório da casa e ligou para seus pais, pedindo para que viessem buscá-lo. O pai efetivamente veio e levou o filho e seu carro. Na semana seguinte, entrou com um processo contra a casa, acusando-a de cárcere privado.
Conto esta a história a Marco Antônio Lopes, Vice-Presidente para Assuntos em Segurança de Eventos da FENAVIST (Federação Nacional de Segurança e Transporte de Valores), Everson Cremonesi, diretor da ESC, uma das maiores empresas de segurança brasileiras, Luiz Humberto Caparroz, major reformado da Polícia Militar e hoje responsável pela segurança do Carnaval de Rua de São Paulo, e Claudio Roberto Ulhôa Cintra, tenente-coronel da Polícia Militar, hoje em reserva, em um sala de reuniões na sede da Associação Brasileira de Segurança Privada, a ABSEG. A rapidez, objetividade e, principalmente, unanimidade da resposta me surpreendeu: “Está certo. Você não pode reter ninguém em lugar nenhum. Isso é cárcere privado”.
Conversando com quem está diretamente envolvido no dia a dia de situações como essa, percebo como evoluiu a consciência e a profissionalização de quem é responsável pela segurança do público em eventos. Pelo menos na cabeça daqueles que, naquela mesa, estão lutando por uma regulamentação clara para colocar luz em um ambiente onde ainda existe uma gigantesca escuridão de conhecimento em relação a direitos e deveres. De quem contrata, de quem atua e de quem se beneficia de tais serviços: o público.
O motivo da nossa conversa foi o recente caso da morte de um frequentador da festa Mais, dentro das dependências da Central 1926, uma casa de eventos no centro de São Paulo acostumada a receber muitas festas independentes da cidade. No último 29 de setembro, depois de ser retirado de uma briga, o frequentador se voltou para o embate com o segurança. Mal preparado, o profissional sacou um canivete — “que nunca deveria estar portando”, segundo Cremonesi — e feriu mortalmente o cliente da festa.
Um caso que, infelizmente, faz parte da história dos eventos musicais em todo o mundo. O mais célebre de todos aconteceu em 1969 no autódromo de Altamont, nos Estados Unidos, em um festival de rock para mais de 300 mil pessoas: o Altamont Speedway Free Festival. Preocupada com a violência que a gangue de motoqueiros Hells Angels poderia causar no festival, a produção teve a seguinte ideia: contratá-la para fazer a segurança do evento. Deu tudo errado. Os próprios “seguranças” assassinaram Meredith Hunter, também com uma facada.
Festa sei lei
Na São Paulo dos anos 80, era comum ver em shows alguns seguranças cobrindo o rosto com balaclava e portando um taco de baseball. A inibição das brigas era feita através da intimidação. Quanto mais violenta parecia a equipe, mais o beberrão pensaria antes de arrumar confusão. Como se beberrão pensasse. Mas são outros tempos e, se depender de quem estava sentado comigo àquela mesa, tempos que ficarão para sempre no passado. Liderada por Lopes, essa turma tem dedicado seus esforços para regulamentar de vez a nada fácil profissão de manter seguro um evento com 10 mil, 20 mil ou 100 mil pessoas consumindo álcool e com as emoções à flor da pele.
Uma grande vitória nesta batalha veio em setembro, com a aprovação da Lei nº 14.967, que finalmente impõe procedimentos e regras à contratação e execução de serviços de segurança privada em eventos. “Até o dia 09 de setembro, a segurança de eventos não tinha uma legislação tão específica. Ela não existia, na verdade. Tínhamos uma lei de 1983 que falava só em segurança patrimonial. A gente está lutando há 16 anos para legalizar isso. Agora foi criado um estatuto. Uma lei que rege a segurança de eventos no Brasil inteiro. Antigamente, só haviam portarias e pareceres”, explica Lopes.
As mudanças com a nova legislação
A lei traz mudanças importantes. A partir de agora, casas noturnas ou eventos precisarão de um projeto de segurança assinado por um gestor com especialização. O projeto leva em conta não só a quantidade de público, mas também as características do local onde será realizado, e até mesmo o tipo de público a que se destina. A abordagem necessária para a Parada LGBT+, por exemplo, é diferente da de um festival de heavy metal. O hábito do consumo de álcool também é levado em conta.
Outro ponto importante é justamente o de colocar ordem dentro das empresas de segurança privada. “Para cada empresa legalizada no Brasil, existem quatro clandestinas”, conta Cremonesi. É justamente o histórico jeito mambembe de se montar uma equipe o grande responsável por incidentes como o que ocorreu em São Paulo. A segurança sempre foi pensada em segundo plano, tanto por quem contrata, como por quem executa. Aquela história: “opa, estou precisando de dez seguranças pra um evento que vou fazer mês que vem, conhece alguém do teu bairro que esteja querendo ganhar uns trocos?”. Nada mais perigoso em um serviço que envolve situações tensas, demandando equilíbrio emocional e conhecimento.
A partir de agora, mesmo o contratado freelance precisa, obrigatoriamente, ter passado por um curso específico para segurança de eventos, tornando-se um profissional homologado, portando uma Carteira Nacional de Vigilância, fiscalizado pela Polícia Federal. Trata-se de um curso rápido, de 20 horas, mas segundo os especialistas que conversaram comigo, suficiente para estar apto a um trabalho como este, ainda mais sob a responsabilidade de um gestor e protegido por um bom projeto de segurança.
Além disso, a 14.967 também pretende organizar a operação das empresas “faz tudo”. “O que acontece muito no mercado é justamente a empresa de portaria, recepção ou limpeza, de olho no contrato, oferecer uma coisa que ela não pode fazer, que é a segurança patrimonial ou de eventos”, intervêm o Major Caparroz. A partir de setembro, qualquer empresa de serviços pode ter, sim, sua divisão de segurança, desde que tenha em seu quadro de funcionários gestores formados para coordenar a equipe. Gestores, importante lembrar, com formações bem mais complexas do que a da pessoa que vai estar na linha de frente, apartando briga ou organizando uma saída rápida de emergência.
A entrada da Polícia Federal no jogo também serve para combater um mal bastante presente neste universo: a contratação de policiais militares e civis em dias de folga como seguranças. Pensando como “autoridades”, é comum que esse pessoal preste o serviço armado, coisa que é completamente ilegal. “Ninguém pode estar, em ocasião alguma, portando armas, de fogo ou brancas”, explica Cremonesi. Em um país onde é muito comum o pensamento dos empresários de que é mais seguro contratar um policial, mesmo sabendo de sua ilegalidade, tanto para ter um segurança mais temido quanto também para construir uma relação de amizade com as delegacias, a ponto de conseguir “uma aliviada” quando algum problema acontece com responsabilidade do contratante, coibir este procedimento é fundamental.
A culpa é de quem?
Primeiramente, a responsabilidade criminal será sempre de quem cometeu o crime. O segurança despreparado que perdeu a cabeça e feriu ou matou alguém vai responder individualmente. A legislação anterior já previa, no entanto, a corresponsabilidade tanto da empresa de segurança contratada, quando da casa noturna ou evento que a contratou. Mas aí, a desgraça já aconteceu. E é por isto que lutam as associações que conversam comigo: por uma profissionalização e regulamentação que evite esse tipo de ocorrência no futuro.
Se o cerco da nova lei realmente surtir efeito, veremos um ambiente mais claro envolvendo a questão da segurança privada em eventos. Contratantes com mais conhecimento sobre como escolher a empresa correta, seguranças mais preparados (e também mais seguros para exercer sua profissão) e, principalmente, os consumidores, mais conscientes do que significa um evento seguro, tanto para si quanto para seus filhos. Comento com os entrevistados o tamanho do trabalho que eles têm pela frente, de conscientização entre todas as partes envolvidas.
O caso Bruno Mars
Nossa entrevista teve de ser adiada por alguns dias porque, quando conversei com Cremonesi, ele estava cuidando da intensa turnê do Bruno Mars em São Paulo, com seis shows lotados no Morumbi. Cada um deles contava com uma equipe de 800 seguranças. Muita gente! O trabalho foi todo planejado sob a regulamentação da nova lei, e serve como um exemplo sobre como as coisas funcionam agora.
“O processo funciona assim: a produtora do evento determina seu gestor de segurança, que, em conjunto com o gestor da empresa, contrata a quantidade de efetivo. Ambos validam juntos o planejamento, que envolve a quantidade de pessoas e o posicionamento. Eu tenho que sair de dentro da empresa com todos os vigilantes habilitados, com o curso de formação em dia, reciclagem em dia e também uma extensão para grandes eventos [acima de três mil pessoas], exigido por uma portaria da Polícia Federal. A partir daí, meu despachante cadastra junto à PF todos os nomes dos seguranças que participarão do evento. Isso habilitou a minha empresa e todos os colaboradores a trabalharem neste show”, detalha Cremonesi. São estes procedimentos obrigatórios que, inclusive, dão suporte jurídico a uma empresa (e solidariamente ao contratante) caso algum profissional de segurança, individualmente, resolva agir por conta própria e fazer uma besteira.
Até agosto de 2024, a questão do efetivo era nebulosa. O dono do evento era quem decidia quantas pessoas eram necessárias, baseando-se no achismo ou, pior, na economia financeira. “O pessoal achava que colocando um na porta do banheiro, um no caixa e dois na portaria, já era suficiente”, conta Caparroz. Agora, o mesmo plano de segurança feito a portas fechadas entre contratante e contratado deve ser apresentado previamente à Polícia Federal. “É preciso mostrar, inclusive, o gerenciamento de riscos envolvendo cada evento. Se a Federal não achar adequado, não vai aprovar”, explica Lopes.
“Da para fazer uma comparação com a lei dos Bombeiros Civis, por exemplo”, segue Caparroz. “No caso do cálculo de bombeiros necessários, a única conta feita é em relação ao número de pessoas. Quando a gente vai para a área de segurança, eu preciso entender se o evento vai ser fechado por tapumes ou grades, se tem bebida alcóolica ou não, qual o tipo de público ou até mesmo o artista. O público do Bruno Mars é completamente diferente público do KNOTFEST“, completa Cremonesi.
No momento em que conversamos, me vem à cabeça a viabilidade sobre tudo isso. Estamos falando de eventos grandes, milionários. Mas e a festinha para 200 pessoas em uma casa noturna? “A lei vale até para uma festa de criança com dez pessoas”, interrompe Lopes. “Vale para todos os tipos de evento. Temporários, de rua, de prefeituras…”. O plano de planejamento de riscos deve ser apresentado à Polícia Federal com 60 dias de antecedência (Lopes explica que estão tendo reduzir para 30, pensando nos promotores menores).
No que diz respeito a custos, não há muito o que discutir. Afinal, o serviço de segurança é mais importante do que qualquer outro dentro de um evento que está sendo frequentado por desconhecidos, alcoolizados, vulneráveis e, no caso da cidade de São Paulo, golpistas. A cidade vive uma epidemia de violentíssimos golpes praticados com drogas comumente chamadas de “boa noite, Cinderela”. Um crescimento que, pela razão bastante íntima envolvendo as vítimas, está sendo muito menos discutido do que deveria. E as equipes de segurança podem ajudar muito na diminuição dos ataques.
A burocracia envolvendo todos esses processos talvez seja a que mais vais dificultar os promotores de evento, digamos, semiprofissionais. No mundo em que vivemos, o resultado é conhecido. Quando se sobe a régua, somente os mais preparados, inclusive financeiramente, conseguem sobreviver, complicando o trabalho de quem está nessa mais pela paixão do que pelo lucro. No entanto, é também um discussão delicada. O que vale mais? A segurança de um jovem ou seu acesso aos rolês? Para muitos pais, a resposta tem sido bastante clara.
Já existe, segundo Cremonesi e o Major Caparroz, um envolvimento maior das ONGs de acolhimento com os responsáveis pela segurança de eventos, principalmente os mais específicos, como a Parada LGBT+ ou o Carnaval de Rua. Questões hoje óbvias como a forma de se tratar um frequentador ou as regras de uso do banheiro já foram um problemão para a equipe na linha de frente. “Conversamos com consultorias no assunto para sempre lidar com cada público da forma correta”, explica Cremonesi. Brinco com ambos perguntando o que é mais fácil: aprender sobre a questão de gêneros ou apartar briga de torcida de futebol? De qualquer forma, é gratificante perceber que essas questões já chegaram a esse ambiente.
É seguro ou não?
Em termos práticos, a conscientização em relação a este assunto é fundamental para que, daqui para a frente, seja possível reconhecer com mais facilidade eventos e empresas capazes de oferecer uma festa segura. Uma questão que envolverá muito trabalho. O público mal sabe diferenciar o que é uma abordagem feita para garantir a segurança de todos os outros frequentadores ou uma violação dos direitos do consumidor do beberrão que está dando trabalho.
O pessoal me explica sobre procedimentos que eu mesmo não sabia. Quando uma situação acontece dentro de uma estabelecimento, não se pode, por exemplo, resolver a situação colocando a pessoa “pra fora”, hábito comum desde sempre. É preciso entregá-lo diretamente à polícia. Jogar alguém fora de si na rua representa um problema de segurança, tanto para quem está do lado de fora, quanto para o próprio expulso. Além disso, para saber se um evento é seguro antes de comprar ingresso, ainda será preciso confiar na índole da produtora. Não é possível, pelo menos até agora, fazer uma consulta sobre a questão da regularização de sua equipe de segurança, como um selo de “evento seguro”, a exemplo do que temos para festivais que se preocupam com a questão ambiental.
Para o contratante, após a aprovação da lei, a situação ficou mais clara. Quem busca uma empresa de segurança tem à sua disposição uma série de documentos que atestam sua legalização e, principalmente, seu compromisso com os procedimentos. Já as companhias vão precisar correr para sair da clandestinidade. Espera-se que, após um período de adaptação, mais e mais empresas legalizadas estarão à disposição de quem quer fazer um evento, possibilitando uma maior concorrência de preços.
O primeiro passo, após uma luta de quase duas décadas, já foi dado. Existe lei, regulamento, procedimento para organizar os planos de segurança em eventos privados, e isso já é uma tremenda evolução. A vida dos frequentadores dos rolês não está mais baseada na “experiência” de quem o promove ou segura, mas em uma série de regras e cálculos usados por especialistas para um planejamento mais condizente com a realidade. É o que todos querem. Afinal, ninguém deseja que seu festival, evento, balada ou festa de igreja acabe em tragédia.