Há exatos 40 anos, nascia o Rock in Rio
Revolucionário e impensável para a época, festival foi inaugurado em 11 de janeiro de 1985
Imagine que você trabalhava em uma empresa extremamente tóxica por 20 anos. Chefes escrotos, clima de desorganização, gerentes desviando dinheiro e, se alguém te pegasse fofocando no corredor do cafezinho, era castigo dos brabos. Então, você finalmente se livra da bucha e pede demissão. Você está duro, não tem um puto no bolso. Mas dane-se, a sensação de liberdade é tão grande que vale a pena. Era assim que se sentia a maioria dos milhões de brasileiros em janeiro de 1985, com o fim da Ditadura Militar. E como o Brasil estava em clima de festa, valia tudo para celebrar. Inclusive, comprar ingresso para ir em um novo festival, um tal de Rock in Rio.
Localizado na casa do chapéu, um lugar distante onde não havia nada (incluindo transporte público), o novo evento teve na curadoria músical uma credibilidade sem tamanho. O line-up era espetacular. Um porção de gigantes internacionais, como Queen, George Benson, Rod Stewart e B-52s, se unia à nata da música brasileira para dez dias de festival. Algo inédito, inacreditável e, principalmente, impossível até poucos anos antes.
A cada edição, a estrutura que envolve a Cidade do Rock, local fixo onde o evento é realizado no Rio de Janeiro, melhora mais. Hotéis, transporte, restaurantes (e moradores) foram se fixando para atender à multidão que o frequenta, a cada dois anos. Mas em 1985, meu rei, Jacarepaguá era além de longe para quem está na região mais populosa do Rio. Para ir e voltar, um verdadeiro inferno. Uma chuva que lavou a região no primeiro dia do evento, 11 de janeiro, transforou o lugar em um charco. Era lama até o joelho.
Mas o que importa? Vivíamos cheios de mágoa e inveja sempre que líamos matérias e livros sobre Woodstock, Ilha de Wright e, até mesmo, o nosso Festival de Águas Claras. Nós não queríamos só um festival de música. Nós queríamos um festival com música, lama e perrengue. E isso, o primeiro RiR entregou com tremendo sucesso.
11 de janeiro de 1985, primeiro dia do evento, era uma sexta-feira. O tempo estava mais ameno do que a média do verão carioca, e a chuva lavou o público sem dó. A abertura do festival que se tornaria o maior sucesso comercial brasileiro ficou à cargo de Ney Matogrosso, como um símbolo, mais uma vez, da liberdade. Um cara que meteu teatro, poesia, sexualidade e contestação nas rugas da censura. O piolho mais gordo a habitar as barbas da ditadura. Na época alijado pela falta de informação, muito roqueiro reclamou. Vaiou até. Hoje, se arrependem.
Tudo era festa. Hora de botar para fora aquele grito entalado na garganta há 20 anos. Se existisse um Oscar do “timing”, em 1985 a estatueta iria para Roberto Medina e seu Rock in Rio.
Além de Matogrosso, Erasmo Carlos e Pepeu Gomes completaram o time brasileiro. Os três, muito mais “rock’n’roll” do que qualquer gringo que estava ali no line-up. Fazer rock na Inglaterra era fácil. Quero ver meter guitarra elétrica na Bahia dos anos 70, tempo em que os equipamentos de som brasileiros eram sofríveis.
Uma multidão de 140 mil pessoas celebrava o primeiro grande festival internacional feito no país. Com chuva, com lama, com dificuldade para comprar comida, bebida, ir no banheiro e, principalmente, voltar para casa (tanto que muita gente que frequentaria os outros dias ficou por lá mesmo). Desde a geração beat, de Jack Kerouac, Allen Gingsberg e outros, a liberdade sempre foi associada a um comportamento vagabundo e nômade. Verdadeiramente livres, segundo aquela turma, eram as pessoas que viviam nas ruas, viajando clandestinamente em vagões de trem de carga, descolando trocados. Até para ajudar nesta imersão beatnik o Rock in Rio ajudou. Dormir na lama, em 1985, foi romântico.
E se alguém tem alguma dúvida do quão simbólico foi a escolha de Ney Matogrosso para inaugurar o festival, há exatos 40 anos, leia agora os primeiros versos cantados em um festival que hoje é um dos maiores do planeta:
Deus salve a América do SulDesperta, ó claro e amado solDeixa correrQualquer rio que alegre esse sertão Essa terra morena, esse calor Esse campo, essa força tropicalDesperta América do SulDeus salve essa América CentralDeixa viver esses campos molhados de suorEsse orgulho latino em cada olhar Esse canto e essa aurora tropical
Sob a desconfiança de uma porção de roqueiros radicais, Ney lacrou, antes mesmo da gíria existir!