Como David Lynch moldou minha paixão pelo cinema e pelo desconhecido
Yasmine Evaristo entrega um relato pessoal, profundo e sensível que explica por que o cineasta era tão amado mesmo sendo tão incompreensível
Receber a notícia do falecimento de David Lynch me afetou como se eu tivesse perdido um amigo muito próximo. Esse sentimento me levou a uma espiral de pensamentos sobre como esse cineasta que dirigiu filmes considerados estranhos entrou na minha vida.
Nascida em meados dos anos 1980, fui uma criança educada tanto brincando na rua, quanto em frente à televisão. Me lembro de ainda na infância ouvir Faustão anunciando a grande estreia da TV Globo em 1991 — a primeira temporada de Twin Peaks. Eu não fazia ideia do que aquela série abordava, mas a frase dita inúmeras vezes me provocou curiosidade: “Quem matou Laura Palmer?”.
Para alguém que já tinha entendido a importância de sempre “ir atrás” de quem matou a personagem xis ou ípsilon diante da comoção da morte de Odete Roitman (Beatriz Segall), aquilo foi um bilhete de passagem apenas de ida para um universo muito particular. Claro que minha mãe não me deixou assistir Twin Peaks aos 11 anos, entretanto eu sempre ouvia os comentários das pessoas sobre o que tinha acontecido em um episódio, suas suspeitas, seus estranhamentos e tudo mais o que eu poderia usar para construir em minha cabeça imagens de como possivelmente a série seria.
Anos depois, assisti ao seriado, e sem dúvidas as imagens formadas em minha mente não eram o que eu via na tela. Entretanto, acredito que minha criatividade dialoga bem com a de Lynch: mistério, enigmas, drama e terror. Até hoje, guardo impressa em minha retina a Sala de Espera, aquele estranho lugar, pintado de vermelho, conectando o Agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan) com um mundo metafísico.
Passados alguns anos, me deparei novamente com uma produção de David quando um ex-padrasto me emprestou um VHS de O Homem Elefante, argumentando que seria um dos filmes mais sensíveis que eu assistiria na vida. Na época, pensei que aquilo era uma bobagem, afinal eu ainda tinha muito tempo de vida e assistiria a muitos filmes emocionantes. Ledo engano meu. O Homem Elefante é sim uma das produções mais belas e sensíveis do cinema.
Ver um filme no qual a figura tratada como uma monstruosidade é humanizada permite que nos tornemos pessoas mais atentas ao nosso entorno. A produção, uma adaptação do livro sobre a história real de Joseph Carey Merrick, parece um tanto deslocada de sua filmografia. Mas, assim como em outros filmes do cineasta, a obsessão com certos assuntos como a vida de pessoas atípicas, deslocadas da chamada normalidade, se encontra presente. E com melindre de delicadeza, Lynch explicita a brutalidade do mundo ao questionar se a aparência é realmente o que torna uma pessoa monstruosa.
Na mesma época, em minhas garimpagens em videolocadoras, esbarrei em um filme de um dos meus ídolos da sétima arte. Na capa, Nicolas Cage vestia uma jaqueta de couro de cobra e sobre sua imagem o slogan dizia “Sexo, violência e rock’n’roll”. Lembro de ter alguma conversa com minha mãe para que ela levasse Um Coração Selvagem, censura 16 anos, para a pré-adolescente de 14 assistir. Assisti, fiquei feliz, não tive traumas, tampouco entendi muito o que o filme dizia.
E assim foi sendo formada minha relação com David Lynch. Ele realizando os filmes, eu assistindo e não entendendo nada e minha paixão pelo cinema crescendo. Acredito que os anos seguintes foram estreitando mais minha curiosidade, pois fui amadurecendo e me interessando mais por imagens. Entre os 19 e os 24 anos, na faculdade de Artes, em inúmeros momentos um filme ou outro de Lynch era indicado por algum professor quando as palavras “surrealismo”, “onírico” ou “simbolismo” surgiam em algum debate ou texto em que cabia uma investigação iconográfica para além das artes visuais.
Acontece nesse momento uma aproximação com seus curtas e com suas produções em que cenas e sequências se tornaram referência de sua exploração ao estranho. Em Eraserhead, o pobre Henry Spencer (Jack Nance) passa o filme inteiro tentando lidar com sua existência que parece um pesadelo sem fim. Ao indicar a obra, tenho a vaga memória do professor pedindo para observar como a imagem podia ser opressora e a ambientação incômoda, ainda que a narrativa não parecesse fazer sentido. Assisti, não entendi, gostei e mal sabia eu que já estava ali adquirindo conhecimento sobre linguagem cinematográfica.
Na mesma época, quem ia aos cinemas com frequência ouvia os burburinhos sobre o filme estranho em que havia o mistério da caixa azul. Olha ele aí novamente! Esse aguardei e vi em casa e, com certeza, passei horas — talvez anos — discutindo com um amigo sobre o porquê da caixinha azul, sobre o que era sonho e o que era real em Cidade dos Sonhos. Entendi? Claro que não, e pra piorar, levei anos para perceber que eu não precisava entender.
Meus últimos contatos com a face de Lynch vieram por meio de três filmes nos quais ele atua, mas não dirige. Um deles é Lucky, uma comédia em que ele faz uma ponta sentado em um bar, conversando com o protagonista, Harry Dean Stanton, com o qual trabalhou em Twin Peaks, Império dos Sonhos, Uma História Real e Um Coração Selvagem. O segundo, Os Fabelmans, recente produção dirigida por Steven Spielberg na qual Lynch interpreta o cineasta John Ford, em uma sequência hilária. Spielberg precisou lidar com as peculiaridades, mas foi muito feliz ao convencer David a sair da aposentadoria.
O último deles foi o documentário David Lynch: A Vida de um Artista, que assisti em 2016, mas sempre que possível revisito. Da mesma maneira que é assistir à história e ver parte do processo criativo de David Bowie, em Moonage Daydream, poder ter um mínimo contato com a persona artística de Lynch falando sobre si e suas investigações estéticas provoca em mim um fulgor que não mensuro. Não há palavras para descrever o quão inspiradora a existência de David Lynch é.
Curiosamente, Lynch completaria 79 anos no próximo dia 20. O outro David também partiu em janeiro, no dia 10, apenas dois dias após seu aniversário. Seria janeiro o mês em que nascem e morrem figuras inspiradoras para mim? Não saberei. E não me importo em não saber, pois aprendi isso assistindo aos filmes desse cineasta que me provoca arrepio na pele, taquicardia, pulgas atrás da orelha, sorrisos bobos, risadas altas involuntárias e uma miríade de sentimentos que apenas seu cinema é capaz.