Supergrass Foto: @mrlouz/Divulgação

Supergrass faz revival indie emotivo em São Paulo

Leonardo Vinhas
Por Leonardo Vinhas

Leonardo Vinhas conta como foi o nostálgico show do quarteto britânico — com destaque para a abertura do Scandurra Trio

Uma banda que não grava nada de novo há 17 anos, celebrando um disco lançado 30 anos atrás. Saudosismo pra ganhar dinheiro, ou um grupo consciente de seu legado? Se o sujeito da frase for o Supergrass, talvez seja o caso de dizer que são as duas coisas.

Na noite deste domingo (31), o grupo passou pela capital paulista para a única apresentação brasileira da turnê I Should Coco 30th Anniversary Tour — como o nome diz, dedicada aos 30 anos de seu álbum de estreia, I Should Coco. Uma explosão sonora provocada por urgência adolescente e fome roqueira, o disco vendeu quase um milhão de cópias no ano de seu lançamento (1995), cravou um megahit global (Alright), rendeu um convite (recusado) para estrelar uma série produzida por Steven Spielberg, e tirou uns tantos milhares de pessoas pra fora de casa para cantar “we are young, we run free”. Mas não foi só isso que aconteceu no Terra SP.

Até porque o público não é mais tão young — a enorme maioria tinha cabelos a mais e quilos a menos quando I Should Coco era uma novidade —, nem mais run free: boletos a pagar, filhos para criar, obrigações a cumprir, e todas as outras coisas que não costumam ter cheiro de adolescência. Mas não há dúvida de que muita gente ali estava honrando um desejo antigo de ver a banda que embalou várias estripulias juvenis. O quarteto, que sempre manteve a mesma formação, estava a par disso, e montou essa turnê para que contemplasse todas as canções de I Should Coco e ainda incluísse todos os hits “obrigatórios”.

O Supergrass — e, mais especificamente, a obra homenageada da noite — é de uma época em que o cidadão ou cidadã precisava ir numa loja, comprar o CDzinho e levar para casa. Se não gostasse, provavelmente ia ouvir de novo e de novo, porque plataforma de streaming não existia nem em sonho, e o remédio era tentar descobrir algo que gostasse no produto adquirido.

Supergrass

Foto: @mrlouz/Divulgação

E olha só, dava certo na maioria dos casos! Se o leitor viveu essa época, certamente vai ter umas histórias para contar sobre um disco ou outro que passou a ouvir com mais carinho, ou mesmo grande prazer, depois de uma primeira audição meio enjoada. Pode bem ter sido o caso de I Should Coco, que está longe de ser o melhor disco da banda — In It for The Money (1997) e Supergrass (1999) são muito melhores, e deles vieram as músicas mais celebradas da apresentação.

Na verdade, só a memória afetiva explica o apreço por uma bobagem como We’re Not Supposed To ou pelo óbvio pastiche blues de Time. Mas mesmo que o debut não seja essa fanta toda, o Supergrass é uma beleza de síntese roqueira. A adolescência nunca mais apareceu nos discos seguintes, e isso é ótimo, pois aquela banda moleca jamais teria sido capaz de entregar músicas como Moving (talvez a mais festejada da noite) ou Mary. Eles muito rapidamente deixaram de ser garotos fãs de Rolling Stones, The Kinks e Buzzcocks para virarem adultos que carregavam essa bagagem, mas olhando para os lados e, em menor proporção, para a frente. Assim, ajudaram a definir a sonoridade do rock inglês do final dos 1990 e começo dos anos 2000.

É o grupo que consegue fazer um pop redondinho como Grace com a mesma fluidez que faz uma joia psicodélica como Moving, um rock stoneano como Pumping On Your Stereo, uma baladaça britpop como Sofa (of My Lethargy), um riffzão porrada certeiro como o de Richard III ou pérolas aceleradas de inspiração punk como Caught by The Fuzz e Strange Ones.

Supergrass

Foto: @mrlouz/Divulgação

Tudo isso esteve no show de SP, executado com precisão, mas também com senso de diversão, vigor e — sim, a palavra cabe aqui — jovialidade. A voz de Gaz Coombes está intacta, bem como a do baixista Mick Quinn, que entrega à perfeição os backing vocals característicos. Danny Goffey segue a escola Clem Burke (Blondie) de bateria, na qual eventuais vacilos na condução são compensados com criatividade e muita força, e Rob Coombes sabe fazer de seus teclados o ingrediente secreto de muitos dos arranjos, especialmente quando eles não são perceptíveis de imediato.

Claro que eles sabem que são movidos pelo passado. Já são 17 anos sem lançar nada novo, e o prometido álbum de krautrock, Release the Drones, nunca veio. Gaz e sua turma já disseram que entrar em estúdio ia “arruinar a vibe”, e parecem compreender que, no fundo, a maior parte dos fãs não está muito interessada em novidades, e que dificilmente alguém tenha saído triste do Terra SP porque o setlist não incluiu nenhuma canção de Diamond Hoo Ha, o último disco de inéditas do Supergrass. Foi aquela chuva de canções bonita, executada com uma banda que gosta do seu passado, e sabe onde seu melhor material está concentrado. Muitas vezes, isso já basta, e o mar de sorrisos na saída da casa noturna comprovava que as expectativas tinham sido atendidas.

Mas é justo dizer que, se estamos falando de expectativas, o Scandurra Trio as superou. A banda que Edgard Scandurra montou com seu filho Daniel (baixo) e com o baterista Rodrigo Saldanha (também da Bufo Borealis) é de uma força surpreendente ao vivo. Que o guitarrista do Ira! é um dos melhores da história do rock brasileiro, ninguém discute. Que aos 63 anos ele entregue um show tão alto e poderoso, quase sem respiro, e com um repertório tão bem-construído, é algo de deixar qualquer um ainda mais sorridente.

Scandurra

Foto: @mrlouz/Divulgação

O setlist combinou canções da carreira solo de Edgard, das Mercenárias, de Arnaldo Antunes (de quem o guitarrista é parceiro de criação há décadas) e, claro, do Ira!. A execução irrepreensível fez com que até faixas manjadíssimas, como Núcleo Base e Flores em Você, soassem como novidades, mas o destaque mesmo foram as releituras invocadas de Minha Mente Ainda É a Mesma e Do Chão Não Passa, músicas de sua carreira solo que mereciam ter chegado a um público maior.

A escalação do Scandurra Trio como banda de abertura foi um golaço dos produtores, não só por ter dialogado com o subconsciente do fã de Supergrass, mas principalmente por mostrar a muita gente que tem veterano por aqui que sabe tratar seu legado como algo mais que um baú da memória.

Leonardo Vinhas

Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural na ativa há mais de 20 anos. Escreve para o Scream&Yell desde 2000, já produziu 19 discos para o selo S&Y, e foi co-responsável pelo Festival Conexão Latina.