Do zen-budismo a DJs colombianos, passando por música, tecnologia e ambientalismo, Jota Wagner conta sua experiência no festival realizado no interior de Minas Gerais
“O passarinho que a gente vê cantando na árvore agora só existe porque já existe na nossa mente. Como cada pessoa tem seu ponto de vista, existem milhões de realidades. É preciso perceber que a realidade que nós vemos é relativa. A única coisa que temos de fato é nós mesmos”, me ensina o Monge Enjo, do templo zen-budista Takanji, localizado em Pedra Bela, a 150 km de São Paulo.
É sua resposta para minha pergunta sobre o que, de fato, é real, ao final de um festival em que boa parte das palestras falava sobre Inteligência Artificial, e tantas outras de realidades virtuais, mundos digitais e outras utopias tecnológicas, servidas à bandejada para um público de 30 mil pessoas famintas por informação.
A poucos metros dali, em um pátio vizinho da sede da Escola Técnica de Eletrônica em Santa Rita do Sapucaí/MG, berço do festival HackTown, minha conversa é com o Cacique Hãgui, que apresenta a arte e a cultura pataxó, acompanhado por uma dúzia de “guerreiros” residentes em Paraty/RJ e Porto Seguro/BA. Minha pergunta a ele é sobre a importância da participação indígena em um ambiente voltado para assuntos tecnológicos, como aquele.
“A tecnologia é importante não só para o jovem que mora na cidade, mas também para os indígenas que moram nas aldeias. Chamamos a tecnologia de nosso ‘arco digital’, pelo qual a gente consegue se conectar com outros parentes, de outros estados. Antigamente não tinha essa possibilidade. Para toda a nossa população, ela é muito importante para aproximar os povos, mesmo estando distantes.”
Enquanto conversamos, no último dia do evento, domingo (04) de manhã, estudantes da área, funcionários de empresas de tecnologia e o pessoal da produção caminham tranquilamente pelos corredores, aproveitando os últimos momentos do HackTown 2024. Antes, de quinta a sábado, uma batelada de mais de 800 palestras, majotariamente sobre tecnologia e música, dividiam o público que circulava entre diversos pontos da cidade durante o dia. À noite, artistas independentes de todo o país animavam os diversos palcos montados em praças, esquinas, bares e “casas” montadas por patrocinadores em casarões de Santa Rita.
Muito mais do que o circuito de palestras e shows, são os encontros a melhor parte, facilitados graças à diluição das atividades em vários pontos da cidade. Fumando um cigarro em frente ao hotel, encontro Maria Montenegro, que está no HackTown dando consultoria sobre inclusão e diversidade através de sua empresa, a Atenta!. Durante todo o evento, Maria e sua equipe conversam com o pessoal da segurança, bares e produção sobre abordagem a pessoas trans em palestras, shows e nas ruas.
No ônibus, um longo papo metafísico com Susana Zaman, cofundadora do projeto Maternidade nas Empresas. A iniciativa, criada por uma mulher que sentiu na pele as dificuldades em ser mãe de dois filhos e seguir no mercado de trabalho, incentiva empresas a se comportarem melhor sobre o tema, ajudando-as a “fortalecer a equidade de gênero pela valorização da parentalidade no universo corporativo”. Segundo Zaman, quase metade das mulheres fica desempregada em até um ano após o parto.
Tomo um café em uma barraca sob o sol que, apesar de presente, reluta em esquentar. Ao meu lado, uma dupla se aquece através da traqueia, batendo papo com os balconistas. Logo, sou incluído na roda, sem nem mesmo ter solicitado acesso. Falo com Stefannie Ferreira, oceanógrafa do instituto Winds For Future, que atua na praia do Cumbuco, no litoral oeste do Ceará, e Carlos Careca, homem peixe que tagarela pelas membranas. Careca vem de uma família de pescadores e, do alto de seus 63 anos, se orgulha em dizer que se dedica ao ambientalismo há 55. “Daqui a duas décadas, para estarmos conversando como estamos fazendo agora, ao ar livre, a gente precisará ter passado antes na farmácia da esquina para comprar um tubinho de oxigênio.”
O cara vem de família de pescadores original da comunidade Poço da Draga, em Fortaleza. Desde que se conhece por gente, pega plástico devolvido pelo mar na praia e o transforma em brinquedos, hábito que virou missão de vida e veículo de conscientização ambiental a partir da infância. Ambos dedicam sua vida a tentar mitigar o estrago tremendo que fizemos aos oceanos com a praga do plástico.
Pergunto a Stefannie se a situação ainda tem jeito. E a resposta é triste, embora nada surpreendente: “Agora, a gente só pode tentar diminuir, mas é inevitável que o nosso futuro é bem desastroso. Mas não dá para ficar pensando em desastre. Tem de agir agora. Não tem uma outra geração que vai salvar. Sobrou para a nossa”.
Carlos Careca é um exemplo do tipo de gente que você só encontra no HackTown. Se rotula como catador, e graças ao seu envolvimento com as comunidades de pescadores da sua área, é testemunha ocular do estrago que os plásticos estão fazendo no oceano. “Ensino as crianças, para que elas ensinem seus pais”, me conta, com contagiante entusiasmo. “Sempre dormia e acordava ouvindo o barulho do oceano. Eu saía da cama e ia para a praia ver o que a maré trazia para mim. Fazia brinquedos com embalagens plásticas com rótulos de outros países. Coisas que eu não sabia de onde vinham e nem o que eram.”
Óbvio que, no meio de um festival como este, se encontra muita gente com a mente aprisionada dentro do meio corporativo. Pessoas cujos únicos assuntos são metas, cultura empresarial e novas práticas de administração, tão encrustados na mente que não conseguem sair do tema nem mesmo durante as cervejadas pós-evento. Empresas também aproveitam a agenda para empurrar produtos e serviços embalando-os como palestra, tornando a atividade uma chata leitura de slides proposta pelo “time de comunicação”. Mas dá para fugir facilmente desta agenda olhando com cuidado a extensa programação.
Conforme o sol vai dando adeus, o povo da música vai saindo da toca. E o público se direciona para os diversos palcos e becos onde o som começa a rolar, além de dar uma bela prestigiada nos botecos que já existem na cidade, e que se agigantam para receber as 30 mil pessoas que estão perambulando pelo HackTown.
A ideia proposta pelo festival é que o núcleo musical também se aproprie do ambiente de troca de conhecimento e de contatos, um hábito que ainda está sendo assimilado (mais lentamente do que deveria) pelos artistas independentes brasileiros. Henrique Roncoleta toca um projeto dedicado ao gerenciamento de carreira artística, chamado Marã Music. Cuidou de dois palcos no festival e já é rato de HackTown, tendo participado da mesma forma por vários anos.
“Os artistas estão entendendo, assimilando. Estão acostumados com aquele formato tradicional de festival. Aqui também acontece o evento, acontece a música, mas também tem essa troca e essa conexão, que eu acho que faz parte da construção da carreira do artista. Os que já entenderam isso saem um pouco na frente. Esse tipo de troca é muito valiosa e está acontecendo cada vez mais por aqui”, conta.
O HackTown 2024 dedicou uma parte de suas atividades para um assunto há muito discutido e ainda pouco praticado. A conexão entre o cenário musical brasileiro com o resto da América Latina. Tanto que as estrelas da edição, este ano, foram os DJs do coletivo 574, de Medelín, encabeçados pelo DJ Pope, famosão no continente graças às suas parcerias com J Balvin. Os colombianos participaram de debates, palestras e se apresentaram nas festas mais quentes do rolê, que aconteceram no sensacional Beco do Saci, uma viela localizada nos fundos da pequena rodoviária da cidade, perfeitas para noites de reggaeton.
Artistas do gênero e até mesmo o uso do termo reggaeton eram proibidos em países como México e Argentina, tamanho preconceito com o estilo musical vindo das quebradas colombianas. Pope e os artistas de Medelín tiveram que lutar muito para deixar a associação do país com os narcotraficantes no passado.
“Lá atrás, as pessoas pensavam no reggaeton como uma música de gangsters, do crime. Mas nós já mudamos isso lá na Colômbia. Não falamos mais sobre drogas. É engraçado. A galera dos Estados Unidos, de Porto Rico, fala sobre isso o tempo todo, mas o preconceito ficou só em cima da gente. Nós estamos cansados desse papo. Cansados de sempre ouvir a mesma história sobre Pablo Escobar, cartéis de drogas. Para nós, isso não é cool. Mudamos as letras. Falamos sobre amor, sobre ser sexy sem ser agressivo com mulheres. Mudamos toda a mentalidade sobre o mundo do reggaeton e abrimos a mente das pessoas no mundo todo”, me disse o DJ em uma conversa de fim de tarde.
Pope também se assusta, como muitos de nós envolvidos no cenário musical, com a timidez do artista brasileiro em apresentar seu trabalho para o continente: “A única diferença que existe entre Medelín, São Paulo, Rio, é a língua, para ser honesto. Se você ouvir os tempos de músicas como funk e reggaeton, são o mesmo. Eles vêm do mesmo lugar, conectam com as mesmas pessoas. É preciso mudar a mentalidade de que a língua é um problema. Vão até lá e mostrem sua música, que é boa. Abram seu mercado. Nós amamos vocês na Colômbia. Quando venho ao Brasil, não me sinto um estranho. Me sinto em casa”.
Pelas ruas de Santa Rita, ouve-se de tudo. O indie rock do Far From Alaska, o ótimo garage gaúcho da banda Tess, a MPB de Assucena e as apresentações de dezenas de outros músicos que se deslocam até o HackTown. Mais do que isso, perambulam pelas ruas do festival e lobbies de hotel quando não estão se apresentando.
Os habitantes da cidade, que dobra de tamanho nos quatro dias, se dividem entre os pacatos velhinhos assustados com o vaivém de tanta gente, os jovens que saem para a rua curtir os shows junto com os forasteiros e os comerciantes que, com sorriso de orelha a orelha, faturam alto.
No meio da tarde de domingo, tudo vai voltando ao normal. A Santa Rita do café, do tempo lento mineiro e das garças que enfeitam o Rio Sapucaí vai retomando seu lugar enquanto carretas vão se enchendo de equipamentos de som e luz, e os últimos hackers ainda passeiam pela cidade, à espera do transporte que os levará de volta para casa, com a cabeça cheia de novas ideias, de nova música e de uma nova esperança de equilíbrio entre o moderno, o ancestral e o ambiente que os abriga.