Hoje em dia, a italo disco uma referência consagrada da música eletrônica, mas no fim dos anos 1990Não é o álbum, não é a playlist. O formato de gravação que mais me empolga, há alguns anos, é o DJ set.
Na era da internet, da oferta estonteante de conteúdo, o curador é rei. Na música, os DJ são alguns dos melhores curadores que existem, destilando dias e dias de pesquisa e escuta para chegar nas 15 ou 20 músicas que compõem um registro de uma hora de música.
Vale lembrar que DJ e DJ set vão muito além da música eletrônica. É possível encontrar sets de jazz, cumbia, samba-reggae, ambient, krautrock, citypop japonês, soul music vintage. Lembro de uma vez ouvir um set que tinha apenas música de trilhas de filmes de terror feitas em instrumentos eletrônicos (pense em nomes como John Carpenter e Goblin).
Apesar de também ser um fã de playlists (cometo algumas, inclusive), mesmo a mais cuidadosa dessas seleções não consegue fugir dos buracos entre as músicas e uma certa liberdade para sequências que parecem aleatórias. O DJ set não. Quando as músicas são mixadas ou sequenciadas sem interrupção, há uma certa exigência de que o encadeamento das faixas faça mais sentido. Isso muda tudo, tornando a jornada sonora mais fluída e coesa.
Além disso, o DJ set é também um documento especial de um tempo. Quando se trata do registro de uma apresentação ao vivo, ele pode funcionar como a fotografia sonora de uma festa ou evento específico. Mas ele também pode ser uma cápsula do tempo no sentido mais amplo, representante daquele período. Vejam estes exemplos:
Renato Lopes – Live Mix @ Sra. Krawitz (1993)
A segunda parte de um set do mestre da discotecagem, gravado há quase 30 anos no histórico clube da noite paulistana (tem outras 5 partes do set para ouvir também). Entre outros marcos, o Krawitz foi onde nasceu o fenômeno das drag queens e o DJ Mau Mau primeiramente se projetou como profissional. Essa parte do set traz clássicos de trance raiz e house progressivo de nomes como D.O.P. e Lionrock, entre sons que até hoje ouvimos nos rolês (pelas mãos de discotecários novos e velhos).
Daft Punk – Essential Mix (1997)
Set gravado pela dupla francesa para o célebre programa da BBC britânica na época de seu primeiro álbum, “Homework”. O set apresenta sons da cena francesa de house da época (de artistas como Zdar e I:Cube) e faixas de house e techno do underground americano, muito influentes para a primeira fase do Daft Punk (incluindo nomes homenageados na sua música “Teachers”, que também dá as caras no set).
I-f – Mixed Up In The Hague Vol. 1 (1999)
Hoje em dia, a italo disco uma referência consagrada da música eletrônica, mas no fim dos anos 1990 o subgênero estava completamente esquecido. Graças a esse set de 1999 do holandês I-F, que misturou Kraftwerk, Giorgio Moroder, electro e italo disco, ligando os pontos entre tudo, nomes como Alexander Robotnik, Mr. Flagio e Klein & MBO voltaram às graças do público dançante.
DJ/rupture – Gold Teeth Thief (2001)
Em 2002, os 2ManyDJs impressionaram o mundo clubber com sua (então ousada) fusão de pop, rock, house e hip hop. Era um tempo em que as pistas eram muito segmentadas, então foi uma brisa muito fresca ouvir essa mistura muito bem costurada. O DJ americano Rupture fez algo parecido com esse set em que ele mesclava com técnica espetacular sonoridades periféricas e experimentais de vários lugares do mundo, incluindo hip hop, ragga e sons do Oriente Médio.
Nove sets de 2022
E para 2022, quais foram os sets que marcaram o ano em que ficou para trás a rotina de isolamento social imposta por dois anos de pandemia? Eu escolhi nove exemplos aqui, entre registros representativos e gosto pessoal. Gostaria muito de saber as suas escolhas aqui nos comentários.
RHR – Boiler Room & Heineken: São Paulo
Todos os sets desse Boiler Room, gravado em julho de 2022, valem a ouvida (além de RHR, tocaram Cesrv e Kenya 20HZ e Young Clubber). A apresentação do mestre RHR foi o ápice de uma tarde animada em que funk dançou com techno, house dançou com bass music, R&B dançou com acid. A precisão das transições e a criatividade das escolhas do DJ e produtor de Diadema mantém nossa escuta atenta e os pés em movimento constante.
Suelen Mesmo – Gop Cast 089
Personagem atuante da cena de Porto Alegre, cofundadora do coletivo Turmalina, a DJ Suelen Mesmo já se tornou sinônimo de jornadas sonoras imprevisíveis e imaginativas. Nesse set para a série de podcasts do núcleo Gop Tun, o cardápio apresentado por Mesmo inclui referências de deep house, funk brasileiro, R&B, jazz e breakbeat.
Sean Johnston – Andrew Weatherall Tribute Mix
O veterano Sean Johnston, que também grava como Hardway Bros, montou esse set em homenagem ao magnífico Andrew Weatherall, ícone da cena britânica morto em 2020 e parceiro de Johnston no clube A Love From Outer Space. É uma retrospectiva que permite conhecer as ideias nada óbvias de Weatherall, do sublime remix de Weatherall para “Only Love Can Break Your Heart”, do Saint Etienne (1990) até um dub inédito de 2019 para “I Feel Space”, do Marius Circus.
Suchi – Boiler Room Hyderabad
“Nascida em Oslo, criada em Londres e influenciada por Delhi”, diz a bio dessa DJ que vem chamando a atenção no cenário europeu e sul-asiático. Nesse set gravado na cidade indiana de Hyderabad ela se move com destreza entre house, bass music, música Qawwali, disco music da Índia e mais.
Omoloko – Boiler Room – Dekmantel Festival 2022
Aqui temos um triunfo da globalização. Um DJ potiguar radicado em Belo Horizonte (Omoloko) apresenta em um festival holandês (Dekmantel) para uma franquia britânica (Boiler Room) um set de dance music sul-africana (kwaito) que por sua vez se inspira em um gênero norte-americano (house). Omoloko tocou na hora do warm-up e deu aula não só com sua pesquisa, mas também de como fazer o esquenta do rolê.
Sally C B2B Madam X | Foundation FM – HOR
A irlandesa Sally C e a inglesa Madam X em uma sessão de house bombante e breakbeat sinistro e até uma salpicada de hard house vintage (sim). Um set que vale acompanhar pelo vídeo para curtir o astral festeiro da dupla discotecária.
Kenya 20HZ – Time Warp Brasil 2022
É por sets como esse que a artista de Nilópolis se tornou frequentadora assídua dos bons lineups do ramo. Quem conhece a trajetória de Kenya sabe da sua dedicação à arte da discotecagem. E a sequência aqui mostra um equilíbrio entre variedade e consistência que não se atinge da noite para o dia. Medidas generosas de techno e bass music que funcionam como lança-chamas para a pista de dança.
Job Jobse – Essential Mix
O holandês Job Jobse tem uma pesquisa profunda sobre muitas das vertentes da música eletrônica da década de 1990, o que pode ser ouvido em diversos sets seus ao longo dos anos. Seu primeiro Essential Mix, para a BBC, contém apenas 5 músicas lançadas em anos recentes (de um total de 25). São faixas que oscilam entre ambient house, breakbeat etéreo, progressive house e trance raiz, criando atmosferas oníricas enquanto o BPM vai subindo e subindo.
Roza Terenzi – Patterns of Perception 95
A australiana Terenzi é um dos nomes do ano. ”Edge of Innocence:, seu álbum em parceria com D. Tiffany, foi considerado o melhor de 2022 pelo Resident Advisor (em 2023, ela vem para o festival da Gop Tun). No álbum, como em seus sets, a artista liquidifica sonoridades do drum’n’bass, ambient e breakbeat para ouvidos atuais. Esse set é uma aula de construção de atmosferas, indo do dançante ao contemplativo sem que nada soe fora do lugar