Papa Francisco Foto: Divulgação/@OfficialASRoma

O mais contracultural dos papas

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Jota Wagner explica por que o papa Francisco foi o mais buena onda entre seus pares

Ok, vamos começar sem dramas. A Igreja Católica é uma das instituições mais ricas do planeta, com patrimônio financeiro e imobiliário capaz de fazer Jeff Bezos parecer um dono de lojinha de capas de celular. É mergulhada em um mar de lama que envolve crimes de assédio, machismo cristalizado, perseguições e mortes na Idade Média e relações obscuras com o poder político. Já sabemos disso.

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Sabemos também que foi e é para muita gente um tronco de salvação para os dilemas da vida impossíveis de responder pela ciência e a medicina. Um organizador social necessário nos primeiros tempos das sociedades (se duvida, observe a saída de uma missa de domingo em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais). No entanto, entre as grandes características mais interessantes da instituição, está a capacidade de eleger uma coleção de papas estranhos para um caralho. Carrancudos, feiosos, amedrontadores, difíceis de acreditar que não nasceram na Idade Média e estavam guardados em uma compota de conserva papal há 800 anos, esperando apenas a hora de assumir a mais alta posição dada pela Igreja, a de “Santo Padre”.

E é justamente por isso que reels com imagens do papa Francisco dominaram as sua redes sociais desde o anúncio de sua morte, na última segunda-feira, geralmente mostrando o homem rindo, contando piada, tirando sarros dos fiéis ou, o melhor, fazendo declarações em prol da comunidade LGBT+, das mulheres e das minorias oprimidas. Jorge Mario Bergoglio, nome de batismo de Francisco, era um papa buena onda, torcedor do San Lorenzo (o simpático time argentino do bairro em que nasceu), foi segurança (imaginem só!) de uma boate de tango na adolescência e chegou a declarar que aquele trabalho o ensinou técnicas para aproximar as pessoas da Igreja. Por essa, nem Carlos Gardel esperava. De quebra, conseguiu ser odiado pela extrema direita, e isso já faz do cara o papa mais amado de todos os tempos.

Durante os 12 anos em que esteve à frente da Igreja Católica, Francisco lacrou em várias frentes. O primeiro papa latino-americano foi o que mais trabalhou pelas mulheres na patriarcal estrutura de sua religião (o que na prática, não significa muita coisa, mas no simbolismo de seu posicionamento, sim). Falou em resgatar o “feminino da igreja” e nomeou, de forma inédita, mulheres para cargos importantes no Vaticano, como Raffaella Petrini (primeira mulher como vice-governadora do Estado do Vaticano) e Nathalie Becquart (primeira mulher com direito a voto no Sínodo dos Bispos). Incluiu mulheres na cerimônia de lava-pés e abriu processos de discussões para que fosse permitida ao gênero feminino a função de sacerdotisa — uma virada histórica que não foi concluída até sua morte.”Onde há mulheres no comando, as coisas funcionam melhor”, declarou.

Em relação à comunidade LBGT+, deu um basta na condenação aos homossexuais, enfim. Claro que tudo na esfera das declarações pessoais. No entanto, é a fala do chefe, não é? Alguma coisa deveria, pelo menos, mudar nos andares debaixo. E em um mundo onde a desigualdade cresce a ponto de causar um apocalipse social, reiterou os conceitos de humildade e pobreza da igreja.

Segure a sua pedra na mão antes de arremessar. Novamente, a luta pelos pobres ficou também na esfera do exemplo pessoal. Os bispos e demais sacerdotes da Igreja Católica costumam comparar a instituição a um meio de transporte. Uma bicicleta, pequena, é muita fácil de mudar de direção, basta virar um guidão. Um caminhão ou ônibus, por exemplo, já são mais difíceis. A Igreja, no entanto, é uma locomotiva.

O maquinista do trem na última década foi, pela primeira vez, um padre jesuíta. Historicamente, são uma galera zica. Para se ter uma ideia, no século XVII, na região Sul do Brasil, o padre Lourenço Balda, ao lado do guerreiro guarani Sepé Tiarajú, sentou o santo cacete em cima dos bandeirantes paulistas, que invadiam suas terras para capturar e escravizar indígenas. A verdade é que os bandeirantes odiavam os jesuítas, a ponto de perseguirem e assinarem o padre Juan del Campo y Medina, a maior pedra que já entrou no sapato do Marechal Rondon. Essa é a escola onde estudou Francisco.

Dentre as milhares de declarações que deu durante o papado, Francisco cometeu sim algumas gafes e teve até que se desculpar de algumas delas, quando colocou machismo e feminismo na mesma panela. Mas ganhou o posto, sem qualquer dúvida, do papa mais contracultural de todos os tempos.

A história recente não nos dá boas perspectivas. João Paulo II, de imagem fofinha e pensamento progressista, foi substituído pelo alemão Bento XVI, zoado pelos comediantes como o “papa nazi”, de verve conservadora. Agora, resta esperar a próxima fumaça branca para saber se o trem da igreja católica segue tentando fazer a curva.

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.