Chuvas de reclamações (além da água) estão caindo sobre os festivais brasileiros. Conflito geracional entre quem produz e quem frequenta pode explicar por quê
Os festivais de música foram, durante três décadas, a quintessência do romantismo. Um ode ao marginal e um libelo ao desconforto com uma visão pragmática e materialista da vida moderna. O lema do primeiro Glastonbury, por exemplo, era “um lar para pensadores livres”.
Desconforto que, por outro lado, sentia-se na pele. Submetia-se a longos congestionamentos, caronas com desconhecidos, caminhadas e falta de estrutura para se alimentar ou ir ao banheiro.
Ir a um festival era ir ao encontro do selvagem, em suas várias figurações. Fazia parte do que, hoje, chamamos de “experiência”. Foi assim em Woodstock (1969), na Ilha de Wight (1968), em Águas Claras (1975) e em Glastonbury (1970).
No documentário “O Barato de Iacanga“, que conta a história do festival de Águas Claras, seu criador, Leivinha, conta que a organização só notou que haviam se esquecido de providenciar opções de alimentação para o povo quando viram a fazenda lotada de gente. Mães e tias da equipe foram convocadas para improvisar um sopão e distribuir para a galera.
Avançando para a década de 80 (e ativo até hoje), Glastonbury se firmou como um dos mais desejados eventos do planeta, graças à sensacional escalação de shows, ano após ano.
Chove muito, na Inglaterra. É um terra de charnecas. E chafurdar na lama preta ficou tão comum e, em certo ponto, icônico para os integrantes, que a organização teve de espalhar placas pedindo para o pessoal não fazer xixi nas poças. Afinal, “depois de você, outros usarão este espaço”. Só que com a cara enfiada nele.
Os organizadores dos festivais atuais viveram, leram sobre, se inspiraram nestes tempos
Mas o público, não.
O povo que frequenta esses eventos no mundo todo, hoje, têm a mesma idade dos que o faziam nas décadas passadas. No entanto, não cultuam heróis que morreram de overdose. Muitos, também, não são inimigos dos que estão no poder.
Cada festival brasileiro, atualmente, tem um potencial de conflito entre público e organizadores. O conflito de gerações entre quem produz e quem frequenta os eventos é o grande responsável por este ruído.
John Roberts, Joel Rosenman, Artie Kornfeld e Michael Lang, os criadores do Woodstock, tinham menos de 27 anos quando organizaram o evento. Leivinha, do Águas Claras, 25. Os irmãos Foulk, criadores da Ilha de Wight, menos de 30. Athelstan Eavy, do Glastonbury, o mais velhinho, com 35. A mesma faixa etária do público, e dos artistas que ali se apresentavam.
Em algum momento da história, os organizadores morderam a maçã
Receberam, de braços abertos, os caminhões de grana que foram despejados no baú dos grandes eventos e esticaram o tapete vermelho para as grandes marcas, loucas para “ativações” na galerinha das gerações Y, Z e Alpha (nascidos entre 1981 e 2010), um povo que tinha cartão de crédito e gostava de consumir.
Entre um palco e outro, festivais começaram a enviar stands promocionais de carros, de salgadinhos, de chinelo e desodorante.
Os preços dos ingressos foram às alturas, justificados pelo aumento dos custos. Para se ter uma ideia — e novamente citando os exemplos anteriores —, o ingresso para todos os dias do Woodstock custava, a preços de hoje, 140 dólares. A edição de 1970 do Ilha de Wight, 3 libras. Para curtir todos os dias do primeiro festival de Águas Claras, o equivalente hoje a 224 reais. E o Glastonbury, 1 libra, com direito a camping e leite grátis (?!) durante todo o evento.
Ao transformar os shangrilás da contracultura em um grande negócio, um outro paradigma de consumo se formou. E aí, meu filho, não tem fuga. Ajoelhou, tem de rezar!
Hipnotizados pelo antigo dogma de que “festival é assim mesmo”, os organizadores têm pecado muito no planejamento da infraestrutura de seus megaeventos.
O grande assunto da semana foi o cancelamento da programação de sexta-feira (13/10) do Tomorrowland, um dos maiores do mundo, em Itú (SP). As chuvas de quinta tornaram grande parte da área da Arena Maeda intransitável, assim como estacionamento, banheiros, etc.
Boa parte do público ficou furiosa. Mas isso está longe de ser um episódio pontual. Tem acontecido em muitos outros eventos nos últimos anos.
Filas enormes para encarar banheiros químicos sujos, dificuldade para comer, beber, se locomover. Preços abusivos e obrigatórios (ano passado, cheguei a pagar 14 reais em um isqueiro que não custaria mais de 4, no mundo real). Não tem “planilha de custo” que justifique alguns dos preços praticados.
As produtoras, parece, têm se “esquecido” de considerar que, no dia do seu evento, pode chover. E, obviamente, as chances de chuvas não podem ser consideradas como “evento anormal”. Vivemos em um país de clima subtropical!
Estão normalizados os eventos em que não há abrigo coberto, não há tratamento de solo e o portão de saída fica a quilômetros dos palcos.
O fato de caberem 200 mil pessoas em um autódromo ou fazenda não significa que seja possível atender a todos de forma confortável.
Sejamos justos aqui: o papo é serviço, e não segurança. Neste quesito, não têm rolado falhas dignas de tamanha bronca nos festivais brazucas.
A “experiência” desejada é outra
A verdade é que a geração de hoje tem uma visão completamente diferente do que a experiência de um festival deve ser, e não está ficando quieta quando se depara com um serviço que considera abaixo. Afinal, está pagando bem por isso.
Aos produtores, vale a reflexão!