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Os bastidores da criação do Gorillaz, a banda “fake” que estremeceu o pop há 20 anos atrás e continua atual como nunca
Muito antes da tecnologia ser um imperativo em nossas vidas, o Gorillaz já anunciava que o futuro estava chegando. Vinte anos depois, o debut da banda ainda nos ensina muitas lições sobre a relação artista-tecnologia.
Entre 1967 e 1968, o escritor argentino Jorge Luis Borges deu uma série de palestras, em inglês, na Universidade de Harvard. Buscando desvendar os enigmas da literatura e da linguagem, Borges (que já estava praticamente cego) afirmou: “Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras […] saltam para a vida […]”.
Ultimamente – e cada vez mais –, essa conexão que traz a arte à vida se resume ao mundo virtual, delimitando-se no engajamento dos algoritmos e na busca por respostas rápidas para perguntas que não podem ser respondidas em 280 caracteres. O paradoxo da pasteurização da arte enquanto mera produção de conteúdo é a grande crise existencial de artistas dessa geração; tudo é consumido muito rapidamente, e se sua música não prender a atenção do usuário em até 15 segundos, você já está descartado.
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Diante dessa ansiedade generalizada pelo próximo hype, quantas narrativas são perdidas? Quantas composições, ainda por nascer, são cortadas pela metade para caber em uma rede social? Não é de hoje que a tecnologia é vista como inimiga dos artistas, embora eles dependam cada vez mais dela. Mas, nos últimos tempos, a incansável (e talvez perdida) batalha contra o imperativo tecnológico faz com que os artistas busquem soluções em artifícios do passado.
Há vinte anos, uma banda de mentira já anunciava que o futuro estava chegando.
Nasce uma banda fake
O Gorillaz foi uma invenção despretensiosa de dois caras cansados do sucesso e do pop comercial da MTV. O líder do Blur, Damon Albarn, e o ilustrador Jamie Hewlett, criador dos quadrinhos Tank Girl, se conheceram em 1990 para uma entrevista publicada na Deadline – a revista que lançara a Tank Girl em 1988. Dali para frente, Damon e Jamie mantiveram contato enquanto viam suas respectivas carreiras escalarem: a história de Tank Girl virou filme em 1995, e o Blur assinava com a Virgin Records em 1997 para emplacar Song 2 nos EUA.
Tudo parecia caminhar muito bem; mas a verdade é que ambos estavam desgastados, sentindo-se limitados pelo sucesso. A gota d’água foi o término de seus relacionamentos amorosos. O ilustrador e o músico resolveram morar juntos em um apartamento em Notting Hill, Londres. O imóvel era entulhado de cinzeiros, discos, livros e action figures e tinha pôsteres coloridos em todas as paredes. Entre uma típica festa de popstars londrinos e outra, Damon e Jamie assistiam à MTV. E achavam tudo aquilo horrível. “Acho que Damon estava cansado de ser o líder do Blur, e eu ficava horrorizado vendo as entrevistas dos artistas pop. Então, virei para ele e disse: vamos montar uma banda de mentira?”.
A ideia era ótima. O peso de se ter uma banda evaporaria por ela ser “de mentira”, e isso incluía toda a liberdade que Damon não conseguia mais ter com o Blur e que Jamie se esquecera depois de tanto tempo dando voz à Tank Girl. Ter uma banda de mentira lhes permitiria partir para qualquer outro caminho. E eles escolheram o mais inusitado de todos para aquele começo de década: criar um universo completamente ficcional para uma banda boa de verdade.
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Gorillaz, em sua primeira fase.
20 anos atrás: a estreia de Clint Eastwood
Damon Albarn levou a sério a liberdade que uma banda de mentira lhe proporcionava. Ousou misturar música eletrônica com rock e pitadas de dub, resultando no que hoje se convém chamar de trip rock. Ao entrar em seu estúdio na Jamaica com as composições para o primeiro álbum do Gorillaz, ainda em 1998, Damon reuniu diversos músicos (como Del the Funky Homosapien, Ibrahim Ferrer e Kid Koala) que contribuíram para moldar os conceitos e a sonoridade do disco. Esse processo de composição funcionava como um quebra-cabeça que Damon ia montando conforme os músicos deixavam suas digitais nas canções.
Enquanto isso, Jamie desenhava incessantemente naquele apartamento escuro, sob a luz de uma luminária e rodeado de maços de cigarro. Seu trabalho ia muito além dos traços dos membros 2-D, Murdoc, Noodle e Russel. Havia uma história por trás de cada integrante, uma personalidade, um trauma que deixara sequelas. Não havia nada de mentira nisso. E talvez tenha sido essa verossimilhança o que fez o Gorillaz sair do papel (e das telas) para ocupar o imaginário dos fãs e se tornar cada vez mais real.
Assim, em 5 de março de 2001, o primeiro single da banda vinha ao mundo. Clint Eastwood fez um sucesso estrondoso na Europa; chegou ao 4º lugar do Singles Chart do Reino Unido, ao 1º lugar na Itália e 2º na Alemanha. Nada mal para quem estava farto do sucesso.
O clipe, dirigido por Jamie Hewlett e Pete Candeland e que demorou 4 meses para ficar pronto, reaproximou as artes visuais da música criando um laço inseparável entre elas. Não era algo meramente conceitual: uma não existia sem a outra. Por isso, definir o Gorillaz como uma “banda virtual” é colocá-lo em um lugar artificial. O que aconteceu ali foi o oposto. Essa humanização dos integrantes (que muitas vezes não acontece nem com artistas de carne e osso) instigou o público a querer se envolver naquele mundo fantástico, misterioso e transgressor. Os fãs não eram somente fãs de Jamie Hewlett e Damon Albarn; eles eram fãs daqueles personagens carismáticos que, como qualquer outro artista, se divertiam, exageravam, brigavam e criavam.
Duas décadas depois: The future is coming on
Muito antes de se pensar em lives, hologramas e produções tecnológicas grandiosas na indústria musical, houve – e há, ainda bem! – o Gorillaz. Pensar a internet enquanto ferramenta obrigatória para qualquer artista hoje em dia é tarefa fácil. Mas há duas décadas isso era ousado demais. E mesmo depois de mais de 40 singles, 7 álbuns de estúdio, 2 documentários, almanaques e séries online (e uma futura parceria com a Netflix), a banda ainda se mantém na vanguarda de soluções para um mundo que ainda permanece uma incógnita para muitos artistas da nossa geração. Se o maior desafio é se manter relevante em uma enxurrada de produções, para o Gorillaz a resposta sempre foi a conexão. Afinal, eles souberam muito bem encontrar o espectador certo para fazer, parafraseando Borges, a música saltar para a vida.