French touch Daft Punk é o representante mais famoso do movimento french touch. Foto: Reprodução

O que é o french touch, que Macron quer como Patrimônio Cultural da Humanidade?

Jota Wagner
Por Jota Wagner

Assim como foi com o techno na Alemanha, presidente francês quer que o movimento da house music francesa seja reconhecido pela UNESCO

De quando em quando, um raio cai em algum lugar do planeta. O impacto produz a faísca que faltava para ascender uma fogueira alimentada pela ancestralidade, o contexto social vigente e o talento dormido de artistas que ali perambulavam. Assim nascem os movimentos culturais que, uma vez acesos, vão tomando a comunidade, a cidade, o país e, como fogo alastrante, o mundo.

Para honrar estes cenários culturais, e principalmente impedir que sejam esquecidos nos emaranhados da história, a UNESCO criou, desde 2001, uma lista oficial chamada de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. A partir de sua criação, agentes culturais e instituições locais podem inscrever determinado movimento, contando sua história, para que seja oficialmente aceita na lista. Assim foram reconhecidos, para usar alguns exemplos brasileiros, o samba de roda do Recôncavo Baiano, o Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e até mesmo as rodas de capoeira. Com o reconhecimento, a UNESCO pretende ajudar para que o fogo jamais se apague.

No anos passado, a comunidade festeira do mundo foi surpreendida com a notícia de que a cena techno de Berlim foi incluída pela agência da ONU, a pedido do governo alemão, como patrimônio da humanidade. Muitos comemoraram e alguns criticaram: o techno foi inventado em Detroit por artistas negros. Porque não homenageá-los antes, glorificando a fonte? O que os detratores não sabiam é que, embora as cenas eletrônica de Detroit e Chicago mereçam muito, os Estados Unidos não aceitaram ser membros da UNESCO e, por isso, ficam de fora da lista, que só abrange os países signatários.

Se a Alemanha tem, a gente também quer. Foi o que comentou o presidente Emmanuel Macron em entrevista à Rádio FG no último dia 21, sem deixar dúvidas de que a inspiração para sua nova empreitada cultural de incluir o movimento french touch como patrimônio imaterial veio do país vizinho: “vamos nos inscrever também. Eu amo a Alemanha e todos sabem o quão europeu eu sou”.

Embora seja indiscutível a importância da música eletrônica francesa para o pop mundial a partir dos anos 90, Macron parece desconhecer que, para ser reconhecido como tal, a UNESCO analisa camadas muito mais profundas do que o sucesso de seus artistas e uma identidade musical local. Tanto que nem mesmo a invasão britânica no rock’n’roll ou mesmo o movimento krautrock alemão foram admitidos na lista. Para incluir o techno de Berlim em sua seleção, a instituição levou em conta seu contexto social: o quanto os clubes, festa e raves foram importantes para unificar os jovens das extintas Alemanhas, Ocidental e Oriental, após a queda do muro que separava a cidade em duas. Segundo a própria UNESCO, o bate-estaca berlinense representou “trilha sonora de um espírito de otimismo”. A rival francesa, nem de longe, teve tamanho impacto.

Mas o que é esse tal de french touch?

Começando a tomar forma no final dos anos 80, o termo “french touch” foi criado por Jean-Claude Lagrèze, promoter do clube parisiense Le Palace, e consolidado pelo jornalista Martin James, para rotular um estilo de música eletrônica popularizado na França com sonoridade bem específica, misturando influências da disco music com a house music vinda dos Estados Unidos. Na época, DJs como Laurent Garnier, David Guetta, Dimitri From Paris e, um pouco mais tarde, Bob Sinclar, exploravam essa sonoridade.

Mas foi com a chegada dos produtores que a música tomou realmente uma forma, primeiramente chamados de “filtered house” ou “french house”, graças a elementos comuns em sua sonoridade: os samples com frequências filtrados e a compressão dinâmica nas batidas, trazendo ao cenário eletrônico uma nova energia, copiada à exaustão após o tremendo sucesso que grupos como Cassius, Stardust e Daft Punk fizeram no cenário internacional. Ao ouvir na rádio ou na pista de dança uma música pela primeira vez, era possível reconhecer que o som vinha da França. Este é o argumento de Macron para justificar sua entrada na lista da UNESCO.

Que o movimento french touch mudou a vida de muita gente na pista de dança, não há dúvida. Agora, compreender o quão profundo foi seu impacto social para uma geração e se é o suficiente para ser considerado como um patrimônio imaterial da humidade, cabe à França convencer o povo da agência da ONU.

Dez músicas para entender o french touch

Cassius – 1999

Daft Punk – Around The World

Bob Sinclar – Gym Tonic

Stardust – Music Sounds Better With You

Mr. Oizo – Flat Beat

Modjo – Lady (Hear Me Tonight)

Daft Punk – One More Time

Alan Braxe, Fred Falke – Intro

Etienne de Crécy – Prix Choc

Thomas Bangalter – “Club Soda”

Jota Wagner

Jota Wagner escreve, discoteca e faz festas no Brasil e Europa desde o começo da década de 90. Atualmente é repórter especial de cultura no Music Non Stop e produtor cultural na Agência 55. Contribuiu, usando os ouvidos, os pés ou as mãos, com a aurora da música eletrônica brasileira.