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Espaços públicos, interesses privados: o dilema do Vale do Anhangabaú

Time Warp

O festival Time Warp é um dos principais eventos que rolam no Vale do Anhangabaú. Foto: Jorge Alexandre/Divulgação

Sob concessão desde 2021, coração do centro paulistano vive entre eventos pagos, ações gratuitas e críticas sobre exclusão e gentrificação

As privatizações ou concessões de serviços e espaços públicos voam em São Paulo, sob a gestão do atual prefeito Ricardo Nunes. Um assunto que divide a população em clima de torcida de futebol, pois traz sob o cobertor ideologias econômicas distintas. Para quem apoia, é uma forma de desonerar o estado e abrir espaço para que ele cuide de coisas mais necessárias ao povo. Para quem é contra, é pura preguiça dos governantes, que delegam à iniciativa privada compromissos que são seus, deixando a população à mercê da fome por lucros de grandes capitalistas.

A lógica do lucro é básica: menos custos e mais receitas. O que levou algumas privatizações ao caos, como aconteceu com a companhia de energia elétrica de São Paulo, a privatizada Enel. Para botar ordem na casa, quem entrega uma estrutura pública a uma empresa deve escrever um contrato minucioso, garantindo que a população da cidade não seja prejudicada. Uma privatização é a venda de um patrimônio público. A concessão, por sua vez, é um contrato para que uma empresa privada assuma determinado serviço ou espaço por determinado tempo, seguindo pública. Ambas causam polêmicas e discussões acaloradas.

“A percepção social do bem público está diluída entre o inútil, o desnecessário e o ineficiente, e todo mundo pode ter uma opinião razoável sobre isso, porque isso é fato”, explica Bruno Ferraz de Camargo, advogado e sócio da XiCa advogados, escritorio empresarial com foco em economia regenerativa, restauração e soluções baseadas na natureza.

“Os serviços públicos, comparados com os privados, tendem a ser mais ineficientes, e a ineficiência do Estado é jogada para o cidadão. Nós pagamos por essa ineficiência. Então em vez de se movimentar para que o Estado tenha uma eficiência maior, nós passamos a desejar que o Estado seja tratado como uma empresa. E isso não funciona. Budget com uma linha de receita e despesas, essas coisas. A gestão estatal é diferente, e isso tem provocado um descrédito sobre aquilo que é bem público. E com o passar dos anos, a visão de que o bem público não existe ou deveria deixar de existir. Nas concessões, falando em direito estrito, que é o caso do Vale do Anhangabaú e do Parque Ibirapuera, o poder público chega e diz ‘eu vou te conceder e você vai investir e ter uma destinação específica, e isso exige investimento. Há uma previsão de equilíbrio entre o que vai ser ofertado e o que vai ser investido’.”

O Vale do Anhangabaú. Foto: Reprodução

Em concessões como a do Estádio do Pacaembu, patrimônio histórico da cidade, fica mais fácil de entender. Uma empresa cuida da milionária reforma do local, que estava aos cacos, e recupera o dinheiro com os jogos e eventos. A prefeitura, inclusive, já cobrava o aluguel de quem queria fazer alguma coisa por lá. No caso dos parques Ibirapuera e Água Branca, recentemente concedidos, a lógica é de que a concessionária deixe tudo bonitinho, limpo, iluminado e seguro, e recupere o que está gastando com aluguéis de alguns espaços para o setor privado, como shows, restaurantes e lanchonetes. Mas como lidar com um espaço como o Vale do Anhangabaú? Um vão de passagem na cidade de São Paulo, por onde milhares de pessoas transitam todos os dias, indo e vindo do trabalho?

“A concessão é única, não tem paralelo no Brasil”, explica Marcelo Frazão, diretor da divisão de entretenimento da WTorre, concessionária do parque.

“De um lado, a gente tem uma série de obrigações relacionadas à zeladoria, segurança, limpeza e a obrigação de entregar uma programação pública. Em contrapartida, temos o direito de, em datas de eventos fechados ou não, explorar a locação de espaços, quiosques, a Galeria Formosa (que abre em dois meses) e de patrocínios, que são as marcas que você vê no mobiliário urbano.”

Tudo muito bacana e combinadinho. Não fosse a singularidade do espaço. É como se a prefeitura transferisse a administração da Avenida Paulista, por exemplo. Cuidar do Vale do Anhangabaú, fornecer uma programação gratuita ao público e ainda alugá-lo para eventos privados, como festivais de música e shows, é um avião cujos pilotos estão aprendendo a pilotar após a decolagem.

“Quando a concessão foi concebida, disputada e fechada, existia uma expectativa de que esse equilíbrio entre locação, eventos e patrocínio fosse muito diferente do que esta se provando na prática. Havia um peso maior em locações do espaço, como se tivesse uma potencialidade maior de ocupação daqueles quiosques, restaurantes, bares o algum tipo de comércio”, continua Frazão.

Realmente, os grandes eventos fechados caíram pela metade desde o primeiro ano da concessão, em 2021. Em 2022, 49 festas fechadas aconteceram no Vale, e cerca de 2.900 atividades gratuitas. Até maio de 2025, foram apenas dez (e quase 1.900 gratuitas, segundo a concessionária). E apesar da grande maioria da programação do Vale entregue pelos novos administradores ser gratuita, como encontros de dança, apresentações artísticas, DJs e oficinas, os festivais e shows são os que mais trazem grana para a concessionária. E os que mais incomodam quem não os frequenta.

“As experiências para o povo de São Paulo no Vale do Anhangabaú são só para quem consegue entrar no espaço fechado, pagando”, critica o vereador Nabil Bonduki (PT), contrariando os números apresentados pela concessionária.

“Quando os eventos não estão acontecendo, aquilo vira um espaço sem nada. A característica do Vale do Anhangabaú é a de um espaço público. E não a de um espaço público em alguns períodos. Essa é a típica concessão que deveria ser cancelada.”

Um evento fechado no Vale do Anhangabapu geralmente fecha, com tapumes, o espaço que vai da Praça do Correio ao Viaduto do Chá. Um festival de dois dias, por exemplo, chega a dificultar a passagem de quem atravessa o local por quase uma semana, considerando a montagem e a desmontagem da estrutura.

Time Warp. Foto: Thiago FM Xavier/Divulgação

“Cada evento tem uma implantação”, conta Gustavo Fiorino, diretor da concessão.

“Se a gente está falando, por exemplo, do maior deles, que é o festival Time Warp, é usada praticamente a totalidade da concessão. E nós seguimos rigorosamente o manual de eventos compartilhado junto ao poder público, que indica como vai ser o fechamento. O Vale nunca é fechado para passagem de pedestres, veículos oficias e de serviço. O fechamento também é gradativo e só acontece totalmente 24 horas antes do evento. O que pode acontecer é você ver uma sinalização te direcionando para uma outra via de acesso. Mas tudo é feito junto com o poder público. Este é o formato que a gente conseguiu chegar para um evento comercial.”

Que um grande evento causa distúrbios na mobilidade urbana, ninguém discute. Para que a Lady Gaga toque em Copacabana, o bairro inteiro é interditado no Rio de Janeiro. Festivais em Interlagos fazem com que o trânsito fique infernal a quem mora na região. No entanto e mais uma vez, a característica única do Vale do Anhangabaú pesa. Diariamente, dois milhões de pessoas transitam pelo local, indo e vindo do trabalho.

Para o trabalhador que sai do metrô e precisa pegar uma “via alternativa” para chegar na loja onde bate cartão, é um transtorno. Fiorino usa os mesmos números para fazer um contraponto: “A gente também tem a função de manter o local vivo após o horário de trabalho, com as atividades culturais gratuitas. Cerca de 500 mil pessoas por dia ocupam o local entre as 18h e 00h. E por um discurso talvez elitista, as pessoas não consideram essas ativações que estão acontecendo ali”.

O mesmo vale para o barulho, um dos principais aspectos de reclamação da vizinhança. Em qualquer evento urbano de grande dimensão, muita gente que não está interessada no evento acaba recebendo a sua música por tabela. E em casos como o do Time Warp, o som alto rola durante toda a madrugada — o que levanta o velho dilema entre o direito a entretenimento e o direito a descanso.

Revitalizar um espaço decadente em centros históricos é uma demanda de todas as grandes cidades no mundo. Especialmente em um país com desigualdade gigante, como o Brasil, as ações despertam outra preocupação como efeito colateral: a gentrificação. Para a classe média, é lindo ter um vale cheio de novos bares, restaurantes e grandes shows internacionais, provocando um círculo virtuoso de investimentos privados em hotéis e cafés, do jeitinho que a gente ama ver em fotos de Paris ou Barcelona. Mas para as classes mais baixas, o efeito é o aumento dos aluguéis a ponto de fazer com que um garçom precise viajar por três horas no transporte público para vir e ir do trabalho. E São Paula ainda carrega consigo um problema mais grave: a população em situação vulnerável.

“No caso do Vale do Anhangabaú, a prefeitura tratou de jogar essa responsabilidade, que é exclusivamente pública, para a gestão privada. No contrato, precisamos ter no mínimo quatro assistentes sociais atuando do começo ao fim das atividades comerciais. Quando falamos da saúde pública, moradia e segurança no Anhangabaú, não temos nenhuma grade impedindo que esses assuntos escorram até nos. Isso faz com que a gente tenha um olhar diferenciado para todas as situações. Hoje, temos uma equipe que atua diretamente, fazendo um processo de matriciamento das pessoas em situação de rua, que são acompanhadas junto com a Assistência Social da Prefeitura. Temos pessoas que usam o Anhangabaú como espaço de residência, de base. Mas a maioria é de pessoas que passam o dia ali”, continua Fiorino.

Trocando em miúdos, a concessionária tem a obrigação de acompanhar o que está acontecendo dentro da área concedida, e se comunicar com os órgãos públicos que, geralmente, são lentos para agir. Tomar para si a responsabilidade sobre um problema crônico urbano deve ser esperado de uma empresa, de forma extracontratual?

“O que eu acho que deve existir é a questão da responsabilidade social corporativa. Isso é o fundamental, é o que eu falo em meus cursos de ética. Fazer o que está na lei e ser legalmente aceito é o mínimo do mínimo. Ninguém deve ser premiado por fazer isso. Cumprir os requisitos é uma coisa, mas sua empresa considerou os direitos coletivos difusos? Considerou o impacto na população? Considerou a escuta das populações confrontantes com o teu empreendimento, a utilização do espaço e tudo o mais? É uma questão de responsabilidade social corporativa. Uma coisa é estar dentro da lei. A outra é estar sendo socialmente responsável. Não é pedindo um quilo de alimento na porta do evento que você resolve isso”, completa Ferraz de Camargo.

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