Cid Guerreiro Cid Guerreiro – foto: reprodução Youtube

Netflix, Xuxa e Cid Guerreiro: como esses três elementos fizeram uma canção meio esquecida do axé virar um hit na Argentina

Leonardo Vinhas
Por Leonardo Vinhas

Como uma canção esquecida do axé ganhou uma versão em espanhol (feita por um brasileiro) e foi se tornar um hit viral na Argentina em pleno 2023?

A história de Cid Guerreiro é um desses contos onde a circunstância e a memória afetiva deram mais impulso pro sucesso que qualquer jabá.

Tudo começa em um longínquo 1992, quando os quadris de quase todo mundo obedeciam ao axé, principalmente no verão. A banda Cheiro de Amor (aquela do “Vai Sacudir, Vai Abalar”, lembra?) lança então o álbum Bahia, cuja faixa de abertura é “Doce Obsessão” (de Carlinhos Dias e Carlos Cabral), que teve um sucesso (bem) moderado, mas logo caiu no esquecimento.

Ou não, porque, aproveitando a época do “uno a uno” na Argentina (quando a taxa cambial para o dólar era um peso), turistas daquele país vinham em peso para as praias brasileiras. Nessas viagens, podiam vir escutando o que quer que fosse, mas levavam de volta ao seu país vários hits que sonorizaram as farras movidas à caipirinha. E pensando no sucesso que axé e lambada faziam entre os hermanos, o produtor Afo Verde propôs a Cid Guerreiro lançar um álbum no mercado latino, que teria, entre eles ““Dulce Obsessión”.

A faixa chinfrim da Cheiro de Amor ganharia, então uma versão releitura bem mais animada em espanhol, com a letra vertida para o espanhol pelo co-produtor Pablo Durand e cantada cheia de sotaque por Cid Guerreiro, uma espécie de guitar hero para um gênero onde a guitarra não é protagonista.

A coisa toda parece aleatória, mas não era: além da sua carreira como cantor e guitarrista, Cid era um compositor de grandes hits populares. Emplacou “Te Futaco” (do inesquecível refrão “Eu te futaco, te futeco, te futuco / Tô maluco e me futaca, me futeca”), “Tá Querendo Navegar” e “Dança do Bambolelê”, entre outras, na sua carreira solo. Mas teve sucesso ainda maior com músicas que fez para outros artistas, especialmente Xuxa – que era um sucesso massivo na Argentina na época.

Cid é o autor de “Ilariê”, “Xuá Xuá” e “Tindolelê” , entre outras. E essa última enlouquecia crianças e marmanjos na Argentina – na verdade, até hoje a música pode ser usada para salvar uma festa desanimada, seja um encontro de família ou uma balada errada. E já que o loirão tinha essa baita evidência de que os hermanos gostavam da sua música, por que não sair com uma faixa em espanhol?

“Dulce Obsessión” teve seu sucesso, mas não durou muito mais que um verão..Até que, em pleno 2023, ela entrou na trilha sonora de “Divisão Palermo”, uma série escrita, dirigida e protagonizada por Santiago Korovsky. O homem escolheu também as canções para embalar a história, e procurou trazer composições que misturavam o sentimento prazeroso de nostalgia da infância e adolescência com uma certa dose de vergonha própria.

“Dou muita risada quando penso que, quando estou apaixonado, essa canção me vem à cabeça. Como vou dizer isso? Essa canção para para mim ilustra o que é a alegria total. Pode ser totalmente brega, porque não é o tipo de música que costumo escutar, mas é uma expressão de felicidade absoluta, e além disso, é muito grudenta. Então estava com a ideia fixa de colocar essa música na série”, declarou Korovsky em uma entrevista à Rolling Stone latina.

Mas a verdade é que Korovsky não conseguiu a versão de Cid Guerreiro, porque simplesmente não conseguiu a liberação dos direitos. Conseguir autorizações para lançar uma regravação pode, de fato, ser um pesadelo na América Latina, por diversas razões, que vão desde a (nada) simples burocracia até empresários escroques que controlam o espólio de artistas, passando por editoras que deixam de existir ou de artistas que renegam o passado.

Cid, no caso, não renega o passado, mas está em outra: se converteu ao cristianismo evangélico há mais de uma década, é pastor, faz shows de gospel axé e, até onde se sabe, propaga uma mensagem muito mais tolerante do que a de certos roqueiros que deixaram a música para falar de Jesus (o que não necessariamente significa ser cristão, mas deixemos a teologia pra lá).

A solução encontrada pelos produtores da série foi regravarem a canção, com a atriz e cantora Cecilia Arellano assumindo a voz. E já que tiveram que pagar para fazer uma versão, fizeram logo duas: uma bastante fiel à versão de Cid, e outra acústica, que toca no final do episódio 5.

“Divisão Palermo” é uma série simpática, que está disponível na Netflix Brasil, e que tem também canções do Paralamas na trilha (“Alagados” e “Uma Brasileira”). As duas regravações de “Dulce Obsessión” feitas para a série só podem ser escutadas lá, por ora – não estão disponíveis no Youtube ou em plataformas de streaming. Seria bacana se elas também tivessem vida nova no mercado brasileiro. Um revival de Cid Guerreiro não faria mal a ninguém.

 

Leonardo Vinhas

Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural na ativa há mais de 20 anos. Escreve para o Scream&Yell desde 2000, já produziu 19 discos para o selo S&Y, e foi co-responsável pelo Festival Conexão Latina.

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