Mano Negra Mano Negra – foto: reprodução Youtube

Mano Negra. A turnê feita em um navio, com shows em portos, que abriu as fronteiras latino americanas

Leonardo Vinhas
Por Leonardo Vinhas

Como uma banda francesa dissolveu as fronteiras no rock latino-americano tocando em portos e viajando de trem pelos Andes

Em 1992, um grupo de músicos franceses malucos – que incluía a banda Mano Negra –  saiu de barco de seu país natal e navegou rumo à América do Sul para uma turnê em seis países. Tocavam nos portos, e também em grandes cidades, em shows anárquicos que, não raro, se misturavam com os espetáculos de três companhias teatrais que haviam se unido a eles na aventura náutica. Muita gente vai dizer que o rock da América Latina nunca mais foi o mesmo depois desse rolê. E não há nenhum exagero nisso.

A banda em questão era o Mano Negra, e a empreitada foi a Cargo 92, feita em parceria com as companhias de teatro Royal de Luxe, Philippe Découfflé e Philippe Genty. Mas essa não foi a única façanha da banda, tampouco um esforço solitário de aproximação latino-americana. Também fizeram uma tour de trem pelas selvas andinas, tocaram em cidades remotas onde não havia infraestrutura mínima para se apresentar, e até shows em puteiros rolaram. 

Squatters, rockers e poliglotas

O primeiro disco do Mano Negra, Patchanka, foi gravado em 1988, e já trazia influências de flamenco nas excepcionais “Salga la Luna”, “Mala Vida” e “Indios de Barcelona”, mas era, a rigor, um disco de punk à francesa com influências de Clash, Ian Dury e da herança rockabilly. O álbum seguinte, Puta’s Fever (1989), já mudava bastante a receita, e trazia salsa, rumba, reggae, ska, chanson française e até folk árabe para a mistura. Não era “punk com elementos étnicos”, como rezaria o clichê de anos vindouros, e sim uma música que misturava todos esses gêneros e criava algo novo. 

Era a transposição musical da diversidade dos squats, prédios abandonados que eram ocupados por hippies tardios, anarquistas, militantes da contracultura, desempregados e outsiders em geral. Na época, o rockabilly e o psychobilly eram as estéticas mais presentes, mas havia de tudo e não só nas músicas: artes plásticas, literatura, quadrinhos e teatro eram presença constante naquele ambiente multiétnico e multicultural. 

 

 

Tal qual as melodias, as letras do Mano Negra misturavam vários idiomas, às vezes no mesmo verso. E essa capacidade de se comunicar a todo custo, somada à música, fez com que Puta’s Fever fosse um sucesso na França e rendesse moral (e longas tours) em diversos países europeus. Os shows eram imprevisíveis e contagiantes, e a fama só aumentava. Mas de onde tinham vindo esses caras?

 

 

Sem pátria e sem fronteiras.

Os irmãos Manuel (Manu) e Antoine (Tonio) Chao, e seu primo Santiago Casariego eram filhos de espanhóis que se exilaram na França fugindo da ditadura franquista. Viviam no underground e tocaram em várias bandas, entre elas o combo punk folk acústico Los Carayos e o quarteto de psychobilly Hot Pants (ambas altamente recomendáveis, diga-se). Mas em 1987 eles decidiram se juntar e formar o Mano Negra. 

Vários outros músicos entravam e saíam da formação, até que, em 1988, Manu Chao viu a banda Les Casse-Pieds ao vivo e ficou embasbacado. Tanto se impressionou que convidou seus cinco integrantes para fazer parte do Mano Negra. Assim, além de Manu (voz e guitarra), Santi (bateria) e Tonio (trumpete), o Mano Negra agora tinha Daniel Jamet (guitarra), Joseph Dahan (baixo), Philippe Teboul (vulgo Garbancito, percussão), Thomas Darnal (teclados) e Tomas “Tomasito” Arroyos (técnico de som) em suas fileiras. 

O roadie Jacques Clayeux (“El Jako”) e o trombonista Pierre Gauthé também eram contabilizados como integrantes, e essa numerosa trupe, toda vinda dessa cena de squats, seria a “formação clássica”, embora muitos outros viessem a passar pela banda (até o ex-Dead Kennedys Jello Biafra, mas falaremos disso mais adiante).

 

Meus caminhos tortos, meu sangue latino

A banda foi parar no Peru e no Equador, dois países que nunca tinham visto uma banda de rock francesa. Na verdade, chegaram a tocar em cidades onde sequer havia locais adequados para shows. Mas foi com a Cargo 92 que a coisa tomou outras proporções.

A turnê passou por México, Cuba, República Dominicana, Argentina, Uruguai, Brasil, Colômbia e Venezuela, durando quase cinco meses. Os Mano Negra e as companhias teatrais eram também a tripulação do barco. Mesmo com apoio do governo francês, a empreitada não foi financeiramente lucrativa, mas deixou um impacto profundo em quase todos os lugares por onde passou. 

Em Cuba, confrontaram a truculenta segurança estatal e provocaram um pandemônio dançante histórico. Na Colômbia, na Argentina e no México, a passagem da banda simplesmente transformou a paisagem do rock local, tanto mainstream como alternativo. De repente, ninguém mais queria afetar ares europeizados. O Soda Stereo podia ser a banda mais popular do rock latino na época, mas os descamisados anárquicos do Mano Negra conseguiram fazer com que aquele visual de maquiagem, ternos escuros e ares de dândi perdesse o sentido (e se tornasse meio ridículo, o que era mesmo).

Os músicos perderiam a vergonha de olhar para dentro de casa e, mais importante, perderam qualquer pudor de assumir sua identidade latina. Não que a “latinidade” nunca houvesse sido trabalhada nas cenas musicais locais. Mas é que ver um ataque tão poderoso, anárquico e, ao mesmo tempo, coeso, construído em cima de sólidas bases rítmicas latinas, fez com que muita gente entendesse que já tinha os ingredientes para uma bomba sonora de alto impacto dentro de casa.

Além dos shows, houve outro grande responsável por essa enorme influência: o álbum Casa Babylon (1995). Muito do que o disco apresentou de inédito na época foi ostensivamente incorporado por outros artistas nos anos seguintes, mas até hoje o disco conserva seu poder de impacto. É um liquidificador que processa Stooges com hip hop, banditismo guerrilheiro, sexualidade à flor da pele, futebol com religiosidade, transmissões radiofônicas, vozes da rua, toast nicaraguense e corais infantis, dub pesado, beat caribenho com hardcore, antimilitarismo, raggamuffin, dancehall… E, novamente, de forma coesa!

Mas esse foi um álbum póstumo. A gestão dele foi uma das razões que levou ao fim da banda.

 

Dissolvendo na selva

A Cargo 92 foi um marco, mas também foi extremamente desgastante, física e mentalmente. E em vez de descansar, a banda retornou à França e já entrou em estúdio para gravar o disco. Na viagem, Tonio já havia desistido – da banda e da carreira musical, até. Durante as longas sessões para o disco, o entra-e-sai de integrantes era constante, e todo mundo colaborava era considerado “da banda”. Foi numa dessas que Jello Biafra virou um Mano Negra, ainda que por apenas alguns dias (mesmo assim, ele está creditado no encarte de Casa Babylon).

Em 1993, boa parte da formação clássica já havia se pirulitado, mas ainda assim, os remanescentes decidiram fazer uma turnê de trem pelos Andes, junto com integrantes da Royal de Luxe. Era a época em que as Farc aterrorizavam a Colômbia, e a viagem esbarrou em guerrilha, doenças tropicais, roubos, incêndios em vagões, falta de infraestrutura básica e tretas pessoais. Novamente, tocaram em muitos lugares que jamais haviam testemunhado uma banda de rock, mas o preço foi muito alto. Ao longo da turnê, das 70 pessoas que formavam a entourage, 30 desistiram antes do fim da viagem. E o Mano Negra havia acabado.

Manu ainda finalizou Casa Babylon, que foi lançado após a separação da banda. Ele tentou fazer shows com outra formação, mas seu primo Santi pediu que ele não usasse o nome Mano Negra. Por causa disso, Casa Babylon nunca foi executado ao vivo.

 

 

La vida me da palo

Los Fabulosos Cadillacs, Todos Tus Muertos, Los Autenticos Decadentes, Tijuana No!, Café Tacvba, Maldita Vecindad… A lista de bandas da América Latina que mudou sua sonoridade sob influência do Mano Negra é imensa e se estende por toda a região. Até no Brasil: a fase mais “chacundum” do Skank é herança direta das lições da turma de Manu Chao – tanto que o próprio Manu participa de três faixas de O Samba Poconé (1996), o álbum mais vendido do Skank.

Manu, aliás, continuou conectando diferentes traços e pessoas da cultura latino-americana em sua bem-sucedida carreira solo. Antes de começar a repetir a si mesmo, lançou pelo menos dois grandes álbuns (Clandestino e Proxima Estación… ¡Esperanza!).e seguiu gravando com quem tinha vontade. No meio do caminho, passou algumas temporadas no Brasil e até cometeu músicas em portunhol.

Vários dos integrantes da formação clássica produziram o documentário ¡Pura Vida!, absolutamente imprescindível para a filmografia de qualquer um que se interesse pela força bruta da arte e do idealismo da juventude levado às últimas consequências. O filme traz imagens e testemunhos de todas as turnês, depoimentos inéditos de todos os integrantes “clássicos” (menos de Manu Chao, que se recusou a participar do filme), fala da relação com a “banda-irmã” holandesa Urban Dance Squad, recupera registros dos tempos de squatter e reflete sobre tudo isso.Se quiser assistir, alguém subiu o filme no Youtube (com legendas em espanhol).

Além de toda essa herança, o Mano Negra provou, na prática, que integração cultural pela música é possível e não precisa ser tratada com olhar de antropólogo, chavões de militância ou com arrogância colonialista. Mesmo com origem francesa, conseguiram também provar, por meio de sua música, que os ritmos latinos são aparentados e têm muito a conversar. Uma lição que bem poderia ser revisitada nesses tempos segregacionistas e exaltados que vivemos.

Leonardo Vinhas

Leonardo Vinhas é jornalista, escritor e produtor cultural na ativa há mais de 20 anos. Escreve para o Scream&Yell desde 2000, já produziu 19 discos para o selo S&Y, e foi co-responsável pelo Festival Conexão Latina.

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