Listening party de “LUX”, de Rosalía, no Museu de Arte da Catalunha. Foto: Divulgação“Macbeth”, Rosalía, Armin van Buuren e o hype da nova ópera
Entre o teatro e o TikTok: como a ópera e a música clássica têm se adaptado às novas gerações
Por Estéfani Medeiros
Abre a cortina. O coro lírico de sopranos ecoa profundo e intenso em um instigante contraste de luz e sombra. No palco, um telão exibe um padrão de círculos, uma atmosfera trágica e futurista. Esse primeiro ato poderia facilmente ser confundido com a abertura de um show pop, mas é o início de Macbeth, releitura da ópera de Giuseppe Verdi (que, por sua vez, é baseada na obra de Shakespeare) com cenografia e direção cênica da multiartista Elisa Ohtake. A versão da brasileira foi apresentada no Theatro Municipal de São Paulo no último mês, com sessões esgotadas.

“Macbeth”, em releitura de Elisa Ohtake, no Theatro Municipal. Foto: Rafael Salvador/Divulgação
Corta para o Museu Nacional de Arte da Catalunha. Som de orquestra ao fundo. “Uma mulher repousa sobre um tecido branco no centro da sala. O tecido se espalha ao seu redor em dobras suaves, captando a luz que vem de cima e ondulando como névoa. Ela está completamente imóvel, como se flutuasse sobre uma nuvem pálida.” Essa é a descrição da Vogue para a listening party teatral de LUX, novo álbum da espanhola Rosalía, também apresentado ao mundo no último mês e que tem a ópera como principal fórmula.
Coincidência ou tendência emergente? Para compreender esse cenário, é preciso separar duas dimensões: o impacto digital e o reflexo no mundo real. Visitei o Municipal, mergulhei em dados sobre música clássica e deixei o algoritmo me guiar por conteúdos sobre ópera, reviews de Rosalía, estudos de audiência sobre música clássica nas plataformas sociais e de streaming e lançamentos de artistas do mainstream. A intenção é entender quem ouve, como a internet Z está experienciando e como essas novas visões têm sido recebidas.
Na montagem shakespeariana, Elisa Ohtake apresenta uma releitura contemporânea, e pode se dizer, multimídia da versão de Macbeth de Verdi. Rejeitado pelo conservatório italiano, o jovem compositor teve em Macbeth seu primeiro ponto alto de carreira. Em 1847, quando apresentou a obra, já existiam versões aclamadas do clássico shakespeariano por compositores como Chélard e Nicolini. Verdi, então com 34 anos, ofereceu uma leitura radicalmente mais sombria e teatral, marcada por uma intensidade dramática incomum para a ópera italiana da época. Musicalmente, dá arrepios.
O que ele fez foi subverter a lógica do formato, colocando a dramaticidade acima do virtuosismo e dando mais carga emocional. Criou o que se poderia chamar de uma sinestesia psicológica: a orquestra e os coros gerando tensão visual, sonora e moral com as vozes das sopranos, a emoção conduzindo a percepção. O que começou como polêmica se consolidou, com o tempo, como um marco do repertório operístico. Em algum sentido, o italiano caminhou para que a soprano pop deitasse em sua nuvem de luz. Com Rosalía, a inspiração é no renascimento pessoal da artista, uma perspectiva mais solar, mas repleta de drama.
No Municipal, Elisa amplia essa mesma vocação experimental com o uso da tecnologia.
“Trazer à tona o que não se vê, trazer a cantora pensando em seu camarim, bem como trazer a rua, o exterior ao teatro para dentro do palco, é trazer o aqui e agora para Macbeth”, ela explica ao Music Non Stop. “Misturar linguagens às vezes pode resultar em algo muito interessante, de vez em quando é surpreendente. Portanto, as tentativas precisam existir sempre.”
Atualmente, o público do Theatro é variado. De acordo com números oferecidos pela própria casa, a audiência de 25 a 44 anos já representa entre 40% e 45% do total, consolidando os Millennials como núcleo importante. A Geração Z, ainda pequena em volume, mostra o crescimento mais acelerado: a faixa de 18 a 24 anos praticamente dobrou nos últimos quatro anos, saindo de cerca de 5% para quase 9% do público. Esse avanço coincide com experimentações de montagens, presença de artistas fora da música erudita e projetos de formação de plateia.

“Macbeth”, em releitura de Elisa Ohtake, no Theatro Municipal. Foto: Rafael Salvador/Divulgação
Essa aproximação entre a ópera e os códigos da cultura digital não foi uma intenção direta de Elisa Ohtake, mas reflete seu tempo. A montagem de Macbeth utiliza linguagens que se alinham naturalmente ao modo de consumo das novas gerações: câmeras no palco, transmissão simultânea, fragmentos de bastidores, estética documental e narrativa audiovisual. É o tipo de formato que a Z já consome, não no teatro, mas no TikTok, Twitch, YouTube e em shows híbridos.
Na plateia e no palco, diversidade de interesses, do público que busca novas linguagens ao que permanece fiel à tradição. Macbeth teve noites de aplausos calorosos e vaias, críticas positivas e protesto. O teatro, em sua função essencial: espaço de debate que reflete as tensões da sociedade. Na internet, o lançamento de Rosalía também dividiu opiniões. Entre coroações de “álbum do ano” e acusações de gentrificação cultural e apropriação, os reviews e reacts que circulam entre críticos de arte, músicos eruditos e criadores de conteúdo mostram que a música clássica como estética é poderosa em engajamento, mas precisa se renovar para sobreviver ao digital.
O que os charts dizem sobre música clássica em 2025? Na verdade, pouco ou quase nada. O tradicional Spotify Wrapped de 2024 não traz dados específicos sobre o gênero. Os compilados de Deezer, Tidal e Apple Music também não destacaram o gênero. No Brasil, o YouTube Music manteve gospel, funk e sertanejo entre as faixas mais ouvidas, sem menções a artistas clássicos. Mas nas redes sociais, o panorama muda bastante. O TikTok vem investindo em música clássica desde a pandemia, quando comemorou cinco bilhões de views na hashtag #classicalmusic.
Já no Instagram, com conteúdos em mais profundidade, músicos como o Pianoteca traduzem o universo clássico para a contemporaneidade. “A Rosalía fez mais pela música clássica do que a própria música clássica”, avaliou, gerando chuva de comentários.

Em outro viral, um barítono e uma soprano cantam Ave Maria à capela em Paris. Entre mais de 15 mil comentários, frases como “isso torna a ópera acessível, tangível e interessante” e “esse match foi feito no céu, ouvi esse vídeo 25 vezes”.
Pegando carona, Armin van Buuren lançou em 31 de outubro o álbum Piano, com foco em música clássica, acompanhado de uma playlist do gênero com favoritas do artista. Na mesma época, o TikTok atualizou sua página de virais com a “classical music trend”, reunindo vídeos recentes que usam cortes de Verdi, Mozart e Beethoven como trilha para situações cotidianas, de interpretações emocionadas no carro a dancinhas e reacts.
Rosalía passando roupa em meio a violinistas tem um efeito similar, transformando o erudito em cotidiano. Em novembro, o novo álbum da cantora chegou ao topo global da Billboard 200, no Brasil, com aumento de 109% dos ouvintes, consolidando o impacto do fenômeno também nos números.
Digitalmente, o hype da ópera ainda é catapultado por artistas do mainstream e pelas próprias plataformas sociais, cada uma com seus interesses e estratégias. Mas mesmo quando nasce de impulsos comerciais, esse movimento desperta curiosidade real e amplia o repertório de escuta. A tendência não cria novos ouvintes de ópera da noite para o dia, mas convida as gerações mais jovens a experimentar, seja por um vídeo viral, uma estética compartilhada ou um álbum conceitual.
Relatórios recentes da MIDiA Research sobre music discovery (Q4 2024 e 2025) reforçam essa mudança de paradigma. Entre jovens de 16 a 24 anos, o TikTok e os vídeos curtos se tornaram os principais canais de descoberta musical, superando playlists e rádios digitais. A forma de descobrir mudou e, com ela, o que se entende como pertencimento cultural. Para que a arte não se esvazie nesse processo, o cruzamento entre o digital e o real precisa ser estratégico e intencional: levar a ópera para as linguagens do vídeo curto e das estéticas pop, mas também levar novos formatos de experiência digital — novos olhares — para dentro dos teatros.
Entre o teatro e o feed, os dados mostram que a renovação de público do Theatro Municipal é real, ainda que desigual entre as gerações. A Z se aproxima pela estética, pelos bastidores e pelo compartilhamento, mais do que pela partitura. A ópera, portanto, não está sendo reinventada apenas no palco, mas na forma como é vista, registrada e distribuída.
Se esse movimento representa um novo ciclo de público ou um pico de atenção efêmero, só o tempo dirá. O que parece certo é que a “nova ópera”, e também o consumo de música clássica no geral, não está apenas na partitura, mas no modo como o público a experimenta. Seja com a criatividade de cocriar com Beethoven em um corte do cotidiano ou na curiosidade de perceber elementos digitais familiares aos olhos na adaptação de um clássico.



