No final do primeiro dia de Girls Rock Camp, fui buscar minha filha de oito anos, a Luna, e perguntei, como qualquer mãe que se preze, como tinha sido passar o dia com outras 90 meninas (com idades entre 7 e 17 anos) no acampamento. Ela começou a dar pulinhos e respondeu: “mamãe, não tenho palavras pra te contar!”. Eu, mãe jornalista, cutuquei: “mas, se você pudesse usar uma palavra só, qual seria?”. Luna não pensou duas vezes e mandou: “colossal… foi colossal, mamãe!”. E, antes que me perguntem, colossal não é uma palavra recorrente no vocabulário da minha futura tecladista.
Já no carro ela me contou que tinha visto um show muito legal de uma “banda de rock com vocais de bruxa”, que tocou ao vivo na hora do almoço. Pensei, nossa que banda legal deve ser essa? Horas depois, olhando o feed Instagram, vi que a Rakta, uma das minhas bandas prediletas atualmente, tinha se apresentado pras meninas. Que lindo!
Antes me aprofundar na nossa semana no Girls Rock Camp Brasil, algumas informações básicas pra entender projeto. Trata-se de um acampamento diurno de férias de verão onde meninas podem vivenciar aulas de música (práticas e teóricas), defesa pessoal, noções sobre feminismo, serigrafia, performance de palco e, acima de tudo, como criar vínculos e empatia com outras meninas. Praticar e viver a tal sororidade, palavra tão em alta hoje em dia.
O Camp foi criado em Portland, nos Estados Unidos, em 2001, e hoje acontece em mais de 40 cidades americanas, além de outras 20 espalhadas pelo mundo. No Brasil, ele se estabeleceu em 2013 em Sorocaba, interior de São Paulo, e tem à frente a musicista e socióloga Flavia Biggs, que durante a realização do acampamento tem o apoio de dezenas de voluntárias que se dividem entre aulas, organização das bandas, trabalho na cozinha (elas organizam com todo o cuidado e carinho a chegada das marmitas de todas as campistas, colocando etiquetas com nomes para depois, na hora do almoço e do lanche, entregar as comidinhas a cada pequena roqueira).
Como de costume, o GRCB rolou na segunda semana de janeiro (entre os dias 8 e 13) numa escola pública de Sorocaba, emprestada ao projeto que, assim como no resto do mundo, é realizado no Brasil de forma independente e sem fins lucrativos. Pra se ter uma ideia do quanto ele é feito na raça, todas as meninas pagam uma taxa de inscrição no valor de R$ 250, que dá direito a todas as atividades do camp – exceto à comida, que deve ser trazida de casa diariamente.
Em sua sexta edição, o acampamento chegou aquecido pela estreia, em dezembro último, do longa-metragem Todas As Meninas Reunidas, Vamos Lá, dirigido por Carol Fernandes, filme que mostra como o projeto acende nas meninas a chama do “eu posso”, em todos os sentidos. Numa das falas, uma garota que aparenta ter uns 8 anos diz: “aprendi que as mulheres podem fazer tudo o que quiserem, e que coisas do tipo andar de skate, fazer grafite e tocar rock não são só pra homens”. Caiu uma lagriminha aí? Então espere pra ler o que eu vi.
Trailer do filme Todas As Meninas Reunidas, Vamos Lá!
A música que inspirou o nome do filme sendo executada no show de encerramento do GRCB 2018
No final do segundo dia de acampamento, 17h da tarde, lá estava eu pra pegar a Luna. E, antes mesmo que eu pudesse perguntar sobre seu dia, ela me dá a seguinte intimada: “Mamãe, como você nunca me contou sobre a M.I.A.? Ela é muito legal, mamãe! E aquela velhinha roqueira, eu amei conhecer também, por que você não me falou sobre ela, hein?”, disse dando seus habituais pulinhos. A tal velhinha do rock era apenas a lendária Sister Rossetta Tharpe, uma das mulheres mais emblemáticas do rock, influência declarada de Elvis a Jimi Hendrix, nome que a nossa história rocker de calças fez questão de borrar no panteão dos guitarristas. Luna ouviu sobre esses dois ícones, e também sobre Joan Jett e tantos outros ícones do rock feito por mulheres numa história ilustrada sobre música que a fez entrar no carro e pedir: “bota I Love Rock’n’Roll, mamãe!”.
A cada dia de manhã, quando deixava minha filha no acampamento, observava o crescente apego das meninas umas com as outras e também com suas produtoras, professoras e empresárias. Este ano, 83 voluntárias se revezaram em diferentes papéis. Cabe às produtoras e empresárias ensinar conceitos importantes na fundação de uma banda de verdade, da criação de letras de músicas, logo, identidade visual, performance de palco e coisas bem objetivas como a criação do press kit do grupo, incluindo como criar sua bio e, sim, no final da camp cada garota ganha uma foto oficial da banda que elas mesmas criaram, tirada por uma fotógrafa voluntária.
As empresárias também ajudam a criar os nomes das bandas e tanto nessa missão quanto na criação das letras tomam todo o cuidado para evitar mensagens discriminatórias. No camp, as garotas são estimuladas a tratar as colegas da forma como elas gostariam de ser tratadas e a respeitar diferenças raciais, étnicas, de classe social etc. Letras ou comentários desrespeitosos não são tolerados.
Eu vi isso acontecer na prática. A banda da Luna a princípio ia se chamar Loucas de Pedra. Eu achei divertido no começo, mas no dia seguinte a própria Luna veio me contar que, com a ajuda da produtora da banda, Nicole, resolveram trocar de nome, pois ele era um tanto ofensivo com as mulheres. Verdade, né? Foi aí que a banda formada por duas Lunas (a minha filha, no teclado, e a Luna da guitarra) e três Marias, além da vocalista, Ana Beatriz, virou Luas de Marte. Bem mais legal!
Logo no ato da inscrição (as vagas abrem em outubro e se esgotam em poucas horas pelo Facebook do GRCB) a campista opta por um instrumento, mesmo que ela nunca o tenha tocado ou praticado na vida. Durante o acampamento, as meninas praticam com suas bandas durante duas horas diárias. Se dá pra aprender a tocar em uma semana? Claro que ninguém sai de lá uma St. Vicent, mas o evento de encerramento do camp, que aconteceu sábado, na casa noturna Asteróide, reunindo shows das 15 bandas formadas por campistas, nos mostra que, sim, elas podem tocar. Na real, elas podem fazer tudo que quiserem. “Acredito demais no potencial de transformação social contido no projeto. E, depois de seis anos fazendo a atividade, sentimos demais essa revolução acontecendo!”, diz Flavia Biggs.
Na sexta-feira, último dia de ensaios, quando fomos buscar a Luna, ela estava abraçada com a nova melhor amiga, Maria Luiza, uma ruiva sorridente de 12 anos, baixista da Luas de Marte. “Mamãe eu combinei de voltar o ano que vem, a Maria Luiza também vem”, ela me disse. Sim, filha, pelo jeito já viramos residentes. Nossas próximas férias de verão já têm destino certo: Sorocaba! Se você tem meninas em casa deveria considerar o mesmo destino.
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