Para uma banda com tanto repertório e experimentalismo, uma hora serviu como aperitivo
Ir a um grande festival é uma aventura que exige bastante preparo físico, disposição para enfrentar filas e por vezes assistir a artistas que não curte enquanto aguarda pacientemente para ver sua banda preferida. A epopéia nem sempre termina de forma compensadora, pois os shows são curtos e muitas vezes espremidos entre atrações que não têm nada a ver umas com as outras. Não importa, eu estava decidido a enfrentar chuva, lama e qualquer perrengue a mais para finalmente sacar qual é a do King Gizzard & The Lizard Wizard ao vivo.
A banda finalmente vinha ao Brasil para o Lollapalooza, após muita especulação e um cancelamento de última hora na edição de 2022 “por imprevistos relacionados à covid-19”. E se em 2022 tocariam no meio da tarde, agora foram escalados para fechar o Palco Alternativo. Bem melhor se apresentar para uma audiência cheia e animada, já que seus sets costumam incendiar a plateia com sua mistura energética de sons. Só nesses últimos dois anos, foram seis álbuns — uma vida para muitas bandas que terminam sem conseguir lançar nem metade disso.
Nascido na Austrália em 2010 e liderado por Stu Mackenzie, o King Gizzard fazia um típico rock de garagem, com traços de surf music e psychobilly, mas já com doses esparsas de elementos psicodélicos que iriam marcar o seu som. Por 2014, se dá a primeira das muitas viradas, com faixas mais longas e improvisações contagiantes, utilizando instrumentos como o sitar. Lançam seu terceiro disco do ano, o excelente I’m In Your Mind Fuzz, que iria fortalecer sua posição entre as boas novidades do rock psicodélico da década.
Essas mudanças são frequentes em sua trajetória, com discos em que enveredam pelo jazz fusion, heavy metal, hip-hop e até mesmo música eletrônica. Há também muitos álbuns conceituais e inusitados, como um que soa como um conto do Velho Oeste e sua sonoridade à la Morricone (Eyes Like Sky); um disco em homenagem a Miles Davis, Sketches of Brunswick East; ou o mais recente, The Silver Cord, em que abandonam as guitarras e se jogam na pista de dança.
Também fazem uso das escalas microtonais, muito usadas na música oriental (particularmente, a indiana), como destrincham em Flying Microtonal Banana.
No palco do Lolla, um pequeno grupo já estava aguardando a chegada da banda. Heróicos fãs que vieram especialmente para esse show — alguns deles, por vezes, se pareciam com seres de outra dimensão, gnomos de uma linhagem singular.
Dei graças pelo Kings Of Leon estar tocando praticamente no mesmo horário, o que sem dúvida levou a maior parte do público para vê-los, proporcionando a nós um ótimo local. Após a entrada, sob aplausos e com gritos eufóricos de ambas as partes, o convite: “venham ver os verdadeiros reis!”.
E lançam a hard-metálica Planet B, que logo emenda nos mais de dez minutos de Crumbling Castle, demonstrando habilidades em uma épica viagem com utilização de escalas microtonais e cantos guturais em extrema sincronia e unidade. Mais três pauladas e outra longa incursão pelos territórios do fusion espacial em Hypertension. Segue-se o rock cru com pegada de blues sujo com gaita e tudo, Sea of Trees, de seu primeiro disco, seguida da energética Robot Stop em mais uma aula de entrosamento.
Em se tratando de uma banda com mais de 20 discos em de pouco mais de dez anos, qualquer repertório escolhido para um show de uma hora deixaria muita coisa boa de fora — ainda mais para quem tem o bom hábito de se enredar por longas jams e várias músicas que passam de dez minutos.
Adoraríamos que fossem três dias com performances distintas. Particularmente, gostaria de ver como seria um longo show baseado nesse último e aparentemente desprestigiado trabalho. Contudo, a realidade do festival se impôs e tivemos um excelente cartão de visitas, já que o King Gizzard & The Lizard Wizard prometeu que voltará.
Na parte final, outra jam contagiante em Hot Water, com direito a flauta, gaita e até letra alterada pelo guitarrista Joey Walker para homenagear São Paulo, a tal terra da garoa, em um momento em que ninguém lembrava que molhava. Era como se a chuva turbinasse ainda mais o som para um espécie de The Doors embebido em gota capeta. Fecham com Gamma Knife, outro rock rasgado cheio de referências setentistas, lavando a alma dos empolgados fãs.
Sim, 60 minutos foi pouco para se apreciar plenamente uma cerimônia com seres lagarto, duendes e realeza, mas valeu a pena e deixou aquele gostinho ácido de quero mais.